Resenha: Enclausurado de Ian McEwan

16 de março de 2017 0 Por Fernando Rhenius

(Foto: Fernando Rhenius)

Traição, dinheiro e poder. Essa “tríplice coroa”, rende boas e até divertidas histórias. São qualidades, que reunidas, tem um efeito explosivo.

Exemplos na literatura não faltam para enaltecer isso. E é exatamente, o que vamos encontrar em Enclausurado, do britânico, Ian McEwan. A premissa da história é um triângulo amoroso. John Cairncross, um poeta, sonhador. John sempre valorizou tudo, menos o dinheiro. Seu maior prazer, desde sempre foi escrever poemas.

Tendo uma exímia qualidade com as palavras, John tinha como inspiração Trudy. Muito mais do que uma simples mulher ou uma paixão platônica, era sua esposa. A vida de John, seu modo de agir, pensar e viver, não agradava a deslumbrante e inquietante mulher.

“Como é que eu, nem mesmo jovem, nem mesmo nascido ontem, posso saber tanto ou saber o suficiente para estar errado sobre tantas coisas? Tenho minhas fontes, eu escuto. Minha mãe, Trudy, quando não está com seu amigo Claude, gosta de ouvir rádio e prefere programas de entrevistas a música. Quem, com o surgimento da internet, teria previsto o crescimento continuado do rádio ou o renascimento daquela expressão arcaica, “sem fio”? (…) Página 12

Desgostosa da vida que seu marido oferecia, acabou tendo um caso, com Claude. Poderia ser mais uma história de traição, onde um dos pares, simplesmente larga tudo por, algo fugas, instantâneo. A traição, condenável em qualquer situação, é agravada pela escolha de Trudy, o irmão de John.

Esta é a premissa da história. Ela não é contada por nenhum dos três, e sim por um simpático bebê (quem seria o pai?), que habita o confortável ventre da mulher de gênio forte e olhar penetrante. Ele ainda não nasceu, mas sabe como ninguém ouvir e tirar suas próprias conclusões. Com um gosto refinado, o pequeno, é apreciador de um bom vinho, e boa música. Seus comentários, muitas vezes extremamente ácido, são o ponto alto do livro. 

“E Claude, como um desses pontinhos, quase não é real. Nem mesmo um aproveitador notável, um patife sorridente. Em vez disso, um chato a ponto de ser brilhante, insípido até não poder mais, de uma banalidade tão extraordinária quanto os arabescos da Mesquita Azul. Trata-se de um homem que assobia o tempo todo, não melodias, e sim jingles de televisão ou toques de celular (…) Páginas 27/28

Seu conhecimento vem das muitas horas ouvindo rádio, e televisão. Sua mãe, que agora mora sozinha, precisava de espaço, precisava se reencontrar. Este foi o fraco argumento, dito para tirar John de casa, deixando a porta aberta para viver um amor fantasioso com Claude. O feto, tem graves crises existenciais, ele divaga e muito sobre o mundo exterior, que conhece muito pouco. Sonha que depois do nascimento,  as coisas melhorem. 

Como todo amante, Claude é o tipo de homem galanteador, bom papo e vendedor de sonhos. Ao contrário do irmão poeta, acabou tendo uma vida bem sucedida. Mesmo assim nunca deixou de ser um homem “bobalhão”. Os argumentos que levaram Trudy, a se apaixonar por ele são desconhecidos do bebê. Mesmo tendo poucos meses de vida, já sabe que o “amigo” da mãe, é infinitamente inferior ao pai. Seja pelo intelecto, ou pela vida fácil de sempre querer levar vantagem em tudo. 

“Estamos são e salvos no térreo, em meio ao agitado zumbido matinal das moscas que circulam pelo lixo do vestíbulo. Para elas, as sacolas de plástico abertas se erguem como reluzentes torres residenciais com jardins na cobertura. As moscas vão lá para pastar e vomitar a seu bel-prazer. A indolência geral que elas exibem depois de empanturradas sugere uma sociedade dedicada à recreação amena, a propósitos comunitários e tolerância mútua (…) Página 84.

Tal aspecto, começa a ser considerado pela gestante, com o passar dos dias. Todo esse amor, vai estar presente, após o nascimento da criança? Não bastasse saber que sua mãe, jogou um amor concreto fora por algo descartável, o bebê acaba ouvindo o que não devia. Um plano arquitetado pelo casal, para matar seu suposto pai John. É aí que a história começa.

O pequeno tem um grande conflito interno, o primeiro de uma longa vida, acredita ele. Ao mesmo tem que odeia a mãe, nutre um amor incondicional. Ele quer impedir o crime, ama o pai e não aceita o “amigo” clandestino.

(…) Os chegam a seus primeiros beijos tanto com cicatrizes quanto com desejos. Nem sempre buscam alguma vantagem. Alguns precisam de abrigo, outros pressionam apenas pela hiper-realidade do êxtase, pelo qual contarão mentiras pavorosas ou farão sacrifícios irracionais. Mas raramente se perguntam o que necessitam ou querem (…) Página 128.

Com um texto rebuscado, Ian McEwan, consegue levar o leitor para dentro da barriga de Trudy. Os medos, questionamentos e planos do pequeno bebê, são narrados com um português requintado. 

A história é inspirada em dois grandes nomes. Machados de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas. Onde um morto (Brás Cubas), narra sua trajetória, após perder a vida por conta de uma pneumonia.  Outra foi foi Hamlet, escrita por William Shakespeare.

Um rei morto, e a luta pelo poder. O ensaio teatral conta ao calvário de Hamlet, príncipe herdeiro da Dinamarca, contra seu tio, o Rei Cláudio (Claude), que se casa com sua mãe, Gertrudes (Trudy). Ian pegou a narrativa de Assis com o enredo de Hamlet. 

Doses de humor, os questionamentos de um bebê que, anseia a vida fora da barriga da mãe, e divaga sobre o pouco que sabe sempre acompanhado, de um bom vinho (quando a mãe degusta é claro), fazem Enclausurado uma comovente e agradável leitura.