Resenha: Cujo de Stephen King

13 de janeiro de 2017 1 Por Fernando Rhenius

Edição faz parte da Biblioteca Stephen King. (Foto: Fernando Rhenius)

Se pudermos definir Cujo em uma palavra, seria egoísmo. Esqueça por um momento tudo o que já ouviu falar do livro de Stephen King. Esqueça o simpático São Bernardo que é o principal personagem e de uma hora para outra, se transforma em uma máquina de matar. Dedique toda sua atenção para os humanos que fazem parte da história.

Cujo teve sua primeira edição publicada em 1981, em um período que King consumia muita, mas muita droga. Se as alterações provocadas pelo hábito nefasto, contribuíram para o teor ácido do livro, nunca iremos saber. O que vamos encontrar nas páginas é um mal, causado pelos personagens, comparável com o que o simpático e gigantesco cachorro proporciona. Essa parte triste das sua vista, está retratada livro “Sobre a Escrita – a arte em memórias”. Em sua auto biografia, King, relata de forma fria sua passagem por essa caminho cheio de espinhos.

Do pouco que lembra, King revelou em diversas entrevistas, que resolveu levar com sua moto para um mecânico que morava, fora de Bridgton, no Maine. Ao chegar na oficina que ficava literalmente no meio do nada, King se deparou com um enorme São Bernardo, que se chamava Gonzo. O cachorro que era calmo, atacou King, surpreendendo seu dono.

Por conta desse ataque, a oficina em um lugar inóspito, King começou a criar o enredo para o tema central da história. Um cachorro aparentemente calmo, que ataca as pessoas. A partir deste ponto, desenvolveu os personagens.

A adaptação para o cinema ratificou o mal personificado em Cujo

Tudo acontece em Castle Rock, uma pacata e provinciana cidade do Maine. A paz daqueles lados é severamente quebrada, por uma onda de assassinatos. Seis mulheres foram mortas, entre 1970 e 1975. Pouco depois, se descobriu quem era o autor, Frank Dodd, um dos policiais de Castle Rock. Enfrentando distúrbios mentais e principalmente sexuais, Dodd, acabou se tornando uma lenda urbana para as próximas gerações, seu nome tinha para as crianças o mesmo simbolismo que o velho do saco. Se os pequenos apontavam, seus pais, tios ou qualquer um com um pouco de autoridade, indicava que Frank Dodd estaria à espreita.

Na época, aquele verso lhe causara diversão e perplexidade, mas agora acreditava entender. Que outro nome alguém daria para aquele elástico invisível de alta resistência a não ser amor? Ela seria capa de se enganar e dizer que não amava, mesmo agora, o homem com quem se casou? Que ficou com ele só por obrigação ou pelo bem do filho (isso arrancou uma risada amarga de Charity: se ela o deixasse, seroa pelo bem do filho)? Que ela nunca lhe deu prazer na cama? Que ele não era capaz, às vezes nos momentos mais inesperados (como aquele na rodoviária), de ser carinhoso?” Página 135.

Esta é a premissa da história, que gira em torno das famílias Trenton e Kamber. Vic e Donna, são pais de Tad Trenton. Com uma vida financeira boa, trocam a cidade grande pela calmaria de Castle Rock. A vida do casal e do pequeno filho, começa a mudar, quando Tad, acredita que algo está morando em seu armário. A coisa tem olhos vermelhos, vivos como o fogo, e insiste em querer pegar o pequeno. Mesmo, com fortes argumentos, e um pavor inquietante, seus pais não têm o devido cuidado em ouvir Tad.

Vic era um publicitário, estava às voltas com um cliente, que acabara de enfrentar problemas com um dos seus produtos. Passava mais tempo no escritório, absorto com seu trabalho.  A esposa, era a síntese da dona de casa. Tinha deixado o trabalho para cuidar do filho e do marido. Com uma vida razoavelmente confortável e estável, Donna não estava feliz. Acreditava que poderia ser mais do que uma mãe e esposa, acreditava que sua vida tinha acabado, por conta dos afazeres domésticos. Era uma mulher bonita, inteligente. Sabia que poderia fazer mais.

O mostro do armário, tão comum no imaginário infantil, ganhou uma nova definição

Do outro lado, estão os Kamber. Joe, um típico “caipira” americano. Matuto como só, tinha o ofício de mecânico. Tinha transformado o celeiro da sua propriedade em uma improvisada oficina. Joe era um exímio mecânico. Consertava desde carros, até implementos agrícolas. Seu jeito ríspido, com a mulher Charity era comum. Muitas vezes ela apanhava do marido, sofria calada. Acreditava, assim como Donna, que poderia ser mais do que uma dona de casa, que sofria com a falta de respeito do marido. Charity, não tinha opinião, todas as “leis”, eram ditadas por Joe. Essas leis, tinham um tom agressivo, principalmente depois de uma boa bebedeira que tinha com o vizinho e único amigo Gary Pervier. Veterano de guerra, desgostoso da vida.

Da união de Joe e Charity nasceu, Brett, um menino, que na época dos acontecimentos, na casa dos oito anos. Para desespero da mãe, Brett estava fadado a ser um novo Joe. Passaria sua vida em uma cidade pequena, sem ambições na vida, e tendo como ponto alto, constantes bebedeiras. Brett era inteligente, ela sabia que ele poderia mais. Apenas tinha que mostrar para o filho as diversas portas que uma boa educação e dedicação abrem.

Duas famílias totalmente diferentes, com uma realidade comum. As mulheres estavam insatisfeitas com suas vidas. A mudança dessas rotinas, estaria ligada ao comportamento de Cujo. Existiria dor sim, e um recomeço, não da forma que as duas almejavam.

(…) Jim Brooks cursava uma faculdade de Direito e queimava a cuca para conseguir boas notas, porque quem conseguia boas notas conseguia o diploma, e o diploma abria as portas para que as pessoas tivessem mais oportunidades de ser alguém na vida. Não que fosse garantia de sucesso, mas quem tinha diploma pelo menos podia tentar.” Página 193.

O egoísmo pode ser considerado como ponto alto do livro. Donna, descontente com seu casamento e rotina, acaba tendo um caso com um conhecido da família. Steve Kemp, escritor e restaurador de móveis. É o tipo de homem que tem tudo, mas ao mesmo tempo não produz nada. Por conta da boa lábia, acaba seduzindo Donna.

Como Vic, sempre estava viajando, buscando o sustento da família, Donna se sentia sozinha. Acabou encontrando nos braços do amante uma superficial acolhida. Ao contrário do que se imagina, ela despertou para a vida. Queria dar um ponto final naquilo, teve alguns lapsos de bom senso, que se transformaram em uma culpa, uma raiva vertiginosa de tudo o que tinha feito. Pensava no marido e principalmente em Tad, que não merecia sofrer as consequências de uma separação.

A capa da primeira edição. O mal estava a espreita

Consumida pela culpa, Donna termina seu caso com Steve. Contrariado, pois nunca tinha sido rechaçado por uma mulher, logo ele o homem sedutor. Acaba enviando uma carta para Vic, queria deixar claro que tinha se refastelado com a mulher do publicitário. Queria vingança. O casamento iria sobreviver a esse duro golpe? Vic acreditava que era um bom marido e pai responsável. Toda sua autoconfiança iria por terra. Donna estaria disposta a mudar para salvar o casamento?

Já Charity, sofria com os abusos e desmandos do marido. Se sentia presa em um casamento acabado. Como bônus, vivia apanhando de Joe. Também pensava no futuro do filho. No meio de tanta dor e sofrimento, uma boa notícia. Ela tinha ganho um pomposo prêmio na loteria. Já vinha pensando em uma separação faz tempo, se livrar daquele mal que era Joe. O dinheiro, somado as parcas economias, poderia recomeçar em outro lugar.

Stephen King fazendo publicidade para seu mais novo livro

King, deixa bem claro esta característica egoísta das duas personagens. Enquanto Donna trai o marido em busca de algo que não encontraria em Steve Kemp, Charity, queria apenas recomeçar. A diferença cultural, das duas famílias também fica evidente no trato que Charity tem com a irmã Holly. Ao contrário da irmã interiorana, Holly se casou com um homem batalhador. Jim se formara advogado, eram ricos. Charity, e principalmente seu filho Brett, conseguiram depois de muito custo e ameaças, visitar a irmã que morava na cidade grande. Joel é claro não queria deixar a mulher e o filho viajarem. Tinha inveja e desdenhava do sucesso dos parentes. Sucesso que nunca lutou para conquistar. Era um acomodado.

Brett chegou a alertar a mãe do comportamento alterado e estranho de Cujo. Charity, temia em avisar para o marido do estado do cachorro. Queria poder ver a irmã depois de muitos anos. Seu egoísmo, em mentir para o filho, dizendo que o cachorro estava bem, acabou causando uma enorme tragédia.

Holly, gostava da irmã. Tinha pena dela. Via naquele semblante cansado, a imagem de uma pessoa que nunca iria crescer na vida. Encarava a irmã como um espelho ruim, que remetia a infância das duas em Castle Rock. Estava feliz com a visita. Depois de tantos anos sem ver a irmã, tinha a absoluta certeza que tinha vencido na vida.

E o cachorro?

DVD do filme, item essencial para quem é fã do autor. (Foto: Fernando Rhenius)

Ele era grande e bobão. Cujo era uma das poucas alegrias da família Kamber. Joe tinha ganho o dog, por conta de um serviço não pago. Deu o pequeno ser para o filho. Tinha deixado claro as regras. Toda a responsabilidade de alimentar cujo e principalmente tudo o que ele produzia tinha que ser limpo. Regras assim dificilmente são executadas com destreza por crianças.

Brett, cumpria sua parte do combinado, quase sempre. Isso não impedia seus pais de ajudar. Eles gostavam do cachorro. Era o maior de Castle Rock. Virou um ponto de referência para a oficina de Joe. Como cujo era calmo, todos acabavam pegando e acariciando o animal. Tudo muda, a partir do momento que um morcego pica seu focinho. A partir dali a colossal massa de pelos, se torna inquieto. Não consegue entender o que passa em seu corpo e seus instintos.

(…) Quando o que está em jogo era a sobrevivência, quando você só podia contar com as próprias fichas, o que sobrava era a vida ou a morte e tudo isso era perfeitamente normal. (…) Página 321.

A forma que Stephen King, narra a vida do cachorro, desde a mordida é muito bem-feita. De alguma forma ele consegue transmitir o que o peludo sente. A dor, a hipersensibilidade tanto na audição quanto o pavor da claridade, uma das características dos morcegos, é muito bem retratada. Mesmo Cujo, tocando o terror por onde passa, o sofrimento do animal, é evidente. Ele luta para não matar, tem saudades do tempo em que era um ser pacífico. Não consegue entender o porquê de tudo aquilo.

Os trechos que narram cujo aprisionando Donna e Trent no carro são angustiantes. A luta da mãe contra seus fantasmas pessoais, e as dificuldades para manter o filho vivo são tensas. O calor que assolava Castle Rock, nos dias em que os dois ficaram presos, é bem descrito na narrativa. Quem tem pavor de ambientes fechados, claustrofóbicos, vai sofrer.

A história é dinâmica. As 335 páginas, passam voando. Dividido em pequenos blocos, alternando entre a rotina das famílias, e o drama de Donna e Trent, Cujo é um livro que acaba sendo lido sem parar.

Adaptação para o cinema

O filme ganhou uma versão cinematográfica em 1983. Foi estrelado por Dee Wallace Stone (Donna Trenton), Danny Pintauro (Tad Trenton), Daniel Hugh Kelly (Vic Trenton), Christopher Stone (Steve Kemp), Ed Lauter (Joe Camber), Kaiulani Lee (Charity Camber) e Billy Jayne (Brett Camber).

Quem assistiu ao filme antes de ler o livro, terá grandes surpresas. Muitas passagens do filme estão bem distantes do que está escrito na história original. A caracterização do São Bernardo, é um dos pontos altos da história do cinema. O sofrimento de Brett, deixa qualquer mãe desesperada.

O filme fez sucesso. Arrecadou nos EUA mais de 21 milhões de dólares. Também foi eleito um dos 100 mais assustadores da história, pela revista Bravo.

Biblioteca Stephen King

Cujo é o primeiro volume da nova coleção da editora Suma de Letras. Batizada de Biblioteca Stephen King. Os demais títulos são um mistério, já que várias obras do autor estão esgotadas no Brasil, ou sequer foram lançadas. Nas redes sociais, a editora confirmou que “A incendiária” e “ A hora do lobisomem”, serão os próximos lançamentos.

A série, também vem em capa dura, e um ótimo trabalho de edição. Como material extra, vem com uma importante entrevista de King para Christopher Lehmann-Haupt e Nathaniel Rich, para a revista The Paris Review em 2006. Nela o mestre, revela detalhes da sua carreira, e produção de alguns dos seus maiores best sellers. Também fala do seu problema envolvendo as drogas, e como a família o ajudou a sair do buraco.

Ficha técnica

Tradutor: Michel Teixeira

Editora: Suma de Letras

ISBN: 9788556510259

Páginas: 376