Resenha “Com Sangue”

12 de dezembro de 2020 0 Por Fernando Rhenius

Todas as vezes que Stephen King anuncia o lançamento de um novo livro, vivo um misto de felicidade e um certo temor. Saber que seu autor irá lançar um novo trabalho, é sempre uma ótima notícia. Em se tratando de King, esta notícia é bem comum. 

Também dá um certo fragor quando a editora Suma faz o mesmo, mas aí é mais pelo preço proibitivo do que pela obra. “Com Sangue” foi mais ou menos assim. Lançado em 2020 nos EUA, “If It Bleeds”, seu título original, tinha como premissa reunir quatro contos, onde a temática seria a mídia, ou o sensacionalismo que a imprensa americana, e porque não dizer do mundo, explora a tragédia para vender jornais ou ganhar cliques.

 É um tema atual e que já foi retratado no conto “O Piloto da noite”, presente no livro Pesadelos e Passagens Noturnas Vol.1. Naquela história, um jornalista que adora vender sangue em folhas de jornal, persegue um estranho assassino que utiliza pequenos aeroportos para se deslocar e cometer seus crimes.

 Nos dias atuais, não é preciso alugar aeronaves e sair em busca da sua fonte. Hoje é a fonte que procura seu público. Youtubers, “influenciadores”, uma das piores pragas dos dias atuais e é claro jornalistas que dão aquela forçadinha para a notícia render e vender. 

 “Com Sangue” não é um manual de redação ou como produzir um bom texto jornalístico, mas uma reflexão, de como a mídia e as novas tecnologias acabaram nos transformando em seres dependentes, zumbis conectados 24 horas por dia. Não é tão simples assim. Em se tratando de King, a coisa poderá ter contornos sombrios ou prolixos. Teremos os dois casos no livro que possui 399 páginas, e contou com a tradução de Regiane Winarski.

 O primeiro conto é “O telefone do sr. Harrigan”. É o relato de algo que praticamente sumiu com o passar do tempo, o cuidado e respeito com os idosos. Craig é um adolescente normal, que faz leituras para o excêntrico sr. Harrigan.  Do relacionamento entre “avô e neto” nasce uma amizade e respeito mútuo. Como todo adolescente, Craig insere o idoso na era dos celulares. O pequeno dispositivo muda o modo como ele vê o mundo. Harrigan é poderoso e isso parece se transportar para o celular depois de sua morte. E é aí que a história começa.  

Não é uma história macabra, com sangue e seres se rastejando por aí. É o relato de amizade e em tempos virtuais, com o toque peculiar de King, de por pessoas reais em situações incomuns. Já o segundo conto tem uma pegada mais apocalíptica. 

 “A vida de Chuck” mostra como o trabalho em uma grande corporação pode ser enfadonho e massivo. Aquela imagem de executivo que passa 39 anos na mesma função e de certa forma passa despercebido, um robô que aperta teclas. É mais ou menos assim a vida de Charles Krantz, o Chuck. 

 Do nada, letreiros, propagandas, mensagens na TV enaltecem os 39 anos de serviços bem prestados de Chuck. Só que os agradecimentos fogem do controle e é possível ler a mensagem até do espaço. O caos se instala e como uma ladainha, o “obrigado Chuck”, ganha o mundo.

 Mas quem é ele? Um vírus, algum programa de manipulação do governo ou apenas um bizarro reconhecimento por anos de trabalho? O legal deste conto é a vida simples e invisível de um tipo de pessoa que cruzamos todos os dias, dentro de um ônibus, trabalho e pode ter sérios problemas de saúde, depressão, filho doente, mas a vida corrida impossibilita de notarmos isso. E quando isso acontece, alguém se importa? A tecnologia separa mais do que une. Somos capazes de mostrar compaixão por um cachorro abandonado na Austrália, mas atravessamos a rua se virmos uma pessoa que não queremos dar um bom dia. 

 O terceiro conto se tornou o mais arrastado e um tanto quanto decepcionante. “Com Sangue” nos traz a querida Holly Gibney, que estreou na trilogia Bill Hodges e continuou em Outsider. O próprio King já declarou que Holly é uma das suas personagens preferidas, e não dá para discordar. 

 Com tantos problemas familiares e de personalidade, ela logo conquistou o público pela simpatia. Assim que seu nome foi citado como um dos destaques do livro, a expectativa foi grande. Como seria a Holly como protagonista? 

 Foi estranho e bem arrastado. O conto nos faz voltar ao mundo de Outsider, mas de uma maneira mais atual. Se lá o vilão copiava a fisionomia das pessoas, agora o bandidão é um monstro que se alimenta da desgraça alheia. E como ele consegue isso? Plantando desgraças. 

 Chip Ondowsky é o repórter que sempre aparece no lugar certo e na hora certa, principalmente em tragédias. Lembra muito o repórter interpretado por Jim Carrey, no filme Todo Poderoso, quando criava catástrofes para ganhar notoriedade. No caso de Chip, a coisa é mais sangrenta.

 O enredo tem todos os ingredientes de um bom suspense policial. O vilão, a mocinha que não desiste e um ótimo argumento. King errou em se estender demais no relacionamento de Holly com a mãe (insuportável), que não aceita que a filha não é mais uma criança. Isso acaba prolongando demais a história, e algumas vezes, parece mais aqueles casos de família do SBT. 

 Seria mais rápido se o conto tivesse 10 páginas a menos. Vale a leitura? Vale. Esteja preparado para momentos de indecisão e prolixidade. 

 O último conto é destacado o melhor, e revela um King “raiz”. Digno de estar no livro “Sombras da Noite”, “Rato” é aquele tipo de história que não se sabe o final e um pouco de “Jogo Perigoso”.

 Drew Larson, é um aspirante a escritor. Já lançou um livro que não teve o sucesso esperado. Culpa o bloqueio criativo, e ficou com aquela sensação de que precisa ter um livro de sucesso antes de morrer. Para tentar tirar este peso das costas de uma vez, resolve dar uma última chance. Para isso tem a brilhante ideia de se isolar na casa de campo, para escrever.

Isolada é pouco. Sem internet, telefone precário e isolado. O que seria o local ideal para desenvolver o livro, acaba se transformando em terror. Uma nevasca assola a região, deixando o que seria um momento de paz e inspiração vira exatamente o oposto.  A esposa até tenta convencer o marido, mas a determinação em escrever o livro é maior. Muitas vezes a teimosia cobra seu preço, e ele é bem caro. 

A tempestade chega e tudo fica muito mais complicado. Para “ajudar”, Drew pega uma gripe que o faz ver um rato falante. O que o rato quer? Ele existe ou é uma alucinação? O conto é ágil, rápido e destacado o mais gostoso de ler. Parece que King percebeu que a história da Holly era arrastada, e fechou o livro com um conto ótimo.  

Ele ainda brinda os fãs com curiosidades sobre o desenvolvimento de cada história. Vale a pena “Com Sangue”? Vale. Nos faz pensar sobre nossa dependência da tecnologia, e como a mídia precisa da tragédia para vender notícias. E com um aumento cada vez maior do uso das redes sociais, a coisa só tende a piorar.