Sobre a Escrita – a arte em memórias
2 de julho de 2016Um bilhete, uma redação ou um livro. Passar uma informação da maneira mais correta e sem ruídos é algo que parece simples, mas nem sempre é assim. Em uma geração que parece ter prazer em escrever errado, criando palavras e as poucas certas que sabem, acabam abreviando de um jeito que parece uma escrita em hieróglifos.
Todos sabem escrever, mas isso é feito da maneira certa? O livro de Stephen King, Sobre a Escrita (On Writing, título original) é uma das melhores obras do autor sem sobra de dúvida. Não tem morte, não tem mistério. As 256 páginas do livro são uma mescla de memórias, e dicas de como se tornar um escritor.
Mesmo que sua ambição não seja ser um ferrenho produtor de livros, a obra de King é superior a muitos compêndios de gramática. Com um texto leve e minado de exemplos, as páginas do livro mostram a melhor forma de como “aprender” a escrever.
Currículo
A primeira parte do livro pode se considerar com a autobiografia do autor. Quem é fã de King, vai ter esta como a preferida do livro. Muitas obras já foram feitas para tentar explicar o porquê do sucesso do auto. Suas histórias, muitas premiadas, tiveram sua origem em fatos do seu cotidiano.
Exemplos de como foi a produção de Carrie ou Misery vão surpreender, e provar que tem uma eximia facilidade em transformar pessoas comuns em demônios. King nos leva aos primórdios das suas memórias com passagens da infância, adolescência e vida adulta.
Não nasceu em berço de ouro, e muito antes do primeiro trabalho ser publicado, seus textos foram negados por diversas revistas e editoras. Sendo perseverante e tendo um início de vida sem dinheiro, Stephen foi teimoso e emplacou pequenos trabalhos, até obter sucesso com Carrie.
Mesmo admitindo nunca gostar de Carrie, é inevitável que foi ela que levou King ao estrelato, em um momento complicado da sua família. Passando por privações, o cheque de 200 mil dólares pela publicação deixou ele e Tabitha em êxtase.
Nunca consegui gostar de Carrie White. E nunca confiei nos motivos que levaram Sue Snell a mandar o namorado ir ao baile com Carrie, mas eu realmente tinha algo bom ali. Como uma carreira inteira pela frente. De alguma forma, Tabby sabia disso, e, quando cheguei a uma pilha de cinquenta páginas em espaço simples, eu também soube. No mínimo, eu sabia que os personagens que foram ao baile com Carrie White jamais esqueceriam o que aconteceu. Os poucos que sobreviveram à ocasião, é claro. Página 71.
A dor educa. Se ela vier acompanhada de uma perda, acaba educando muito mais. Foi assim que Stephen encarou a morte, quando descobriu que sua mãe tinha câncer de útero, isso em 1973. Quem perdeu um ente por causa dessa terrível doença sabe como a pessoa fica, e principalmente como ficam os familiares.
Não é fácil encarar e principalmente aceitar a morte de uma mãe. Stephen teve um longo e difícil problema com bebida e drogas, o que acabou influenciando no seu processo criativo. Sabendo que estava caminhando para o fim a passos largos, foi através dos seus contos que tentava pedir ajuda.
Foi nesta época que títulos como O Iluminado e Os estranhos (publicado pela Francisco Alvez Editora) ganharam vida. Esta parte da narrativa é a mais indicada para quem quer conhecer um pouco da vida de King.
O que é a escrita
Escrever é uma arte. Transcrever para um papel, desejos, pensamentos e opiniões de forma correta, é o sonho de quem vive para escrever. Fazer outra pessoa entender a mensagem que passamos deve ser feita de maneira simples e direta. Nesta pequena parte do livro, com apenas duas páginas, King leva a conversa para um tom mais sério.
A escrita não deve ser feita de forma leviana, principalmente se a pessoa for postulante a escritor independente da sua formação. Escrever tem que ser encarado com profissionalismo, e principalmente serenidade.
King acredita que a história que é escrita liga as pessoas. “A menina de vestido vermelho”, pode ser interpretada de várias maneiras, ela é loira? Morena? Qual a tonalidade de sua roupa? Por mais que cada pessoa visualize uma menina de vestido vermelho diferente, a informação passada é clara. Este é o objetivo da escrita.
O local que se escreve e se lê deve ser só seu. Muitos gostam de escrever e ler ouvindo música, sentados em algum banco de praça ou esparramados em uma cama macia. O lugar deve ser único e adequado, aonde sua o foco seja o livro e a leitura. Só assim podemos dar razão ao nosso trabalho.
Caixa de Ferramentas
O ponto alto e principal dica desta parte do livro é clara. Você gosta de escrever? Precisa ler, ler e ler muito. Seja livros, revistas ou até bula de remédio. Com a leitura conhecemos palavras, formas de escrita. Só assim para nosso cérebro captar tudo e conseguirmos passar para o papel. King chama o seu conhecimento, sua experiência na escrita de “caixa de ferramentas”. É a parte mais técnica do livro, mas nem por isso a mais chata.
Coloque seu vocabulário na primeira bandeja da sua caixa de ferramentas e não faça qualquer esforço consciente para melhorá-lo. (Você vai fazer isso enquanto lê, é claro… mas vamos deixar esse assunto para depois.) Uma das piores coisas que se pode fazer é tentar enfeitar o vocabulário, procurando por palavras longas por que tem vergonha de usar as curtas de sempre. Página 104.
Usar as palavras corretamente, não ficar “floreando” o texto para tentar dar um tom sisudo. Isso vai passar a falsa impressão de domínio do assunto, estragando todo o seu trabalho. As dicas neste capítulo são imensas. Nem o melhor dos manuais de gramática vai lhe ensinar mais do que esta parte. Com exemplos, broncas e muitas, muitas dicas.
O sujeito tímido escreve “a reunião será realizada às sete horas” porque, de alguma forma, a frase diz a ele “escreva dessa maneira e todos vão acreditar que você realmente sabe”. Livre-se desse pensamento traidor. Não seja um trouxa! Aprume-se, erga o queixo e assuma o controle da tal reunião! Escreva “a reunião será às sete”. É isso meu Deus do céu! Você está se sentindo melhor, não está? Página 109.
Não vou me alongar neste capítulo do livro, correndo o risco de fazer um manual de como escrever. Cada um tem seu estilo, seus truques para pôr no papel suas ideias e pensamentos. Quem gosta de escrever, sendo escritor, jornalista ou apenas um entusiasta da coisa vai devorar esta parte mais de uma vez. Os comentários que King dá para erros comuns de jovens escritores é algo incrível. A indignação em erros simples, a transcrição disso para o livro dá a impressão que ele está olhando um dos nossos trabalhos e falando “está uma porcaria!”
Sobre a Escrita
Uma coisa que sempre norteou meus pensamentos, e acredito de quem gosta de escrever é: “Alguém lê o que escrevo?” Hoje com uma infinidade de blogs, sites e publicações online, ter um espaço só seu é algo fácil e obtido sem grandes dificuldades.
Logo, ser um diferencial em um meio tão competitivo é complicado, mas não impossível. Nesta parte do livro King nos dá uma das melhores lições do livro. Nem todo material já publicado é melhor do que você tem na sua frente. Assim como na blogsfera, o mercado editorial tem muita coisa ruim, mas que chega a ser publicado por N motivos, nem sempre a qualidade do seu conteúdo é levado em conta.
Nós lemos para experimentar a mediocridade e a podridão indiscutíveis; essa experiência nos ajuda a recolher este tipo de coisa quando ela começa a se infiltrar em nosso próprio trabalho e a nos livrar dela. Também lemos para nos compararmos aos bons e aos grandes, para ter uma noção de tudo o que pode ser feito. E também lemos para ter contato com diferentes estilos. Página 128.
O passado de King está presente neste trecho do livro. Todo o processo que ele criou para montar seus contos, nada extremamente difícil, mas que é sua marca registrada e pode ser feita por qualquer postulante a escritor. Esta parte é voltada mais para quem quer levar a profissão da escrita adiante. Não é algo chato de ser ler, muito pelo contrário. São passadas informações importantes de como o autor desenvolve personagens e métodos de criação. A história está aonde menos se imagina.
Eu me apoio mais na intuição, e consigo fazer isso por que meus livros se baseiam em situações mais do que em histórias. Algumas das ideias que produziram os livros são mais complexas que outras, mas a maioria começa com uma simples vitrine de uma loja de departamentos ou uma estátua de cera. Gosto de colocar um grupo de personagens (talvez um par, talvez só um) em algum tipo de situação desagradável e vê-los tentando se libertar. Meu trabalho não é ajudá-los a encontrar uma saída, ou manipulá-los para que fiquem a salvo – esses são trabalhos que exigem a barulhenta perfuratriz do enredo -, mas sim acompanhar o que acontece e depois colocar no papel. Página 142.
Sobre a vida: Um Postscriptum
A última parte do livro é um relato sobre o acidente que Stephen King sofreu em junho de 1999. Na época o escritor foi atropelado enquanto caminhava perto de sua casa no Maine. Sofreu perfurações no pulmão, teve costelas quebras e ficou literalmente quebrado da cintura para baixo.
O causador de tanta dor, Bryan Smith, perdeu o controle do seu furgão acertando Stephen que caminhava no acostamento em uma estrada perto da sua casa. Sua perna estava quebrada em nove lugares e a reconstrução seria complicada, mas possível. Depois de cinco cirurgias as chances de voltar a andar não eram as mais favoráveis. Cinco semanas após o atropelamento e de intensa fisioterapia, King voltou a escrever.
Eu não queria voltar ao trabalho. Estava sentindo muita dor, não conseguia dobrar o joelho direito e era obrigado a usar um andador. Não me imaginava sentando atrás de uma mesa por muito tempo, nem mesmo de cadeira de rodas. Por causa do meu quadril destroçado, sentar por mais de quarenta minutos era uma tortura, e por mais de uma hora e quinze minutos, impossível. Além disso, o próprio livro parecia mais intimidador do que nunca – como escrever sobre diálogos e personagens, sobre como conseguir um agente, quando a coisa mais importante do meu mundo era o intervalo até a próxima dose de oxicodoma? Página 226.
A cada linha desta parte do livro a dor sentida por King passa para você de uma forma absurda. Sem dúvida a narrativa desta tragédia seja a melhor forma de definir a escrita. Rica em detalhes, reviravoltas e surpresas. O que teria acontecido com Bryan Smith?
Stephen King creditou aos médicos sua recuperação e por que não renascimento. Mas foi sua esposa Tabitha, que esteve ao seu lado durante esta fase complicada. Não só nela, mas desde que se conheceram em um clube de leitura em 1969. Ela segurou as pontas durante as vacas magras, as brigas e a crise com bebidas e drogas. Foi mulher, esposa e mãe em muitos momentos.
Após ler a parte do acidente, é impossível não sentir aquele frio na espinha quando King senta no sofá para uma conversa com George RR Martin. Parece que a perna vai quebrar a qualquer momento!
Por mais que a escrita pode ser uma coisa solitária, algo entre o escritor e os personagens que cria, muito do apoio e inspiração vieram da sua companheira de todos os momentos. Todos temos aquela pessoa que tem a honra de ler nosso trabalho pela primeira vez, aquela pessoa que tem a liberdade da crítica (ela é necessária) mas que não é vista como algo ruim ou pessimista. Arisco a dizer que muito do sucesso obtido por King nestes anos se deu pela companheira que escolheu para dividir seus sucessos e infortúnios. Amor não paga a conta mas deixa a vida muito melhor. Pensamos melhor, agimos com mais serenidade quando estamos do lado da pessoa que nos completa, que aceita muito mais nossos defeitos do que qualidades.
A parte que mais sintetiza o que é a escrita é esta em uma da últimas páginas do livro:
A escrita não é para fazer dinheiro, ficar famoso, transar ou fazer amigos. No fim das contas, a escrita é para enriquecer a vida daqueles que leem seu trabalho, e também para enriquecer sua vida. A escrita serve para despertar, melhorar e superar. Para ficar feliz, ok? Ficar feliz. Página 229.
E, por fim, Parte I: Porta fechada, porta aberta
A última parte traz um dos seus mais célebres contos, 1408. King mostra o texto bruto e depois a versão editada, além de detalhar cada alteração. Um deleite para os fãs, que acabam conhecendo mais um pouco do processo criativo do autor.
Os dois capítulos seguintes são uma série de livros recomendados que ajudaram e muito na lapidação da sua escrita. Muitos deles estão disponíveis no Brasil.
Mesmo não sendo um livro de ficção, Sobre a Escrita nos faz entender um pouco de como funciona a cabeça desde grande escritor. Suas memórias, o processo de criação, e até seus problemas com a drogas e o acidente. King conseguiu retirar experiências das partes complicadas da sua vida. Cada história tem um pedaço de suas dores e glórias. Leitura super recomendada.
Sobre a Escrita – A arte em memórias
Tradução: Michel Teixeira
Biografia e Memórias
ISBN: 9788581052779
Lançamento: 01/04/2015
Formato: 16 x 23
256 páginas
Referencia bibliográfica KING, Stephen. Sobre a Escrita. 1. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. 256 p.
[…] em dúvida sobre qual obra de Stephen King iria ler. Após degustar Sobre a Escrita, minha concepção do autor mudou, melhorou. Fiquei mais fã. O livro, acaba sendo quase uma […]
[…] Achados e Perdidos é a abordagem do fã com o escrito e sua obra. Ele já retratou isso no livro Sobre a Escrita, onde sugere que o personagem tem vida própria, e não cabe ao autor moldar ele conforme seus […]
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