Virei PcD, e agora?
22 de outubro de 2021Quem se lembra daquela propaganda de margarina? A família feliz, todos reunidos em torno de uma mesa posta, cheia de delícias, se preparando para mais um dia de trabalho e estudos. Até o cachorro aparece empolgado com uma tigela de ração!
Essa cena ficou no nosso subconsciente como a síntese da perfeição. Mesmo que você não tenha uma mesa recheada, ou a vida das pessoas naquela situação, tem uma vida, que pode mudar de uma forma tão abrupta, que nem sabemos de onde veio o golpe.
É mais ou menos assim que 8,4% da população do Brasil encara três letras que mudam a vida de qualquer um: PcD. As Pessoas com Deficiência correspondem a 17,3 milhões de brasileiros acima de 2 anos de idade. Desse montante, 49,4% são de pessoas idosas.
Esses números fazem parte do levantamento da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) de 2019, divulgados no dia 26 de setembro. A pesquisa detalha que 7,8 milhões, ou 3,8% da população acima de dois anos, apresenta deficiência física nos membros inferiores, enquanto que, 2,7% das pessoas a têm nos membros superiores. Já 3,4% dos brasileiros possuem deficiência visual; e 1,1% deficiência auditiva. Outros 1,2% – ou 2,5 milhões de brasileiros possuem deficiência intelectual.
Se aceite!
Este é um momento complicado na vida de qualquer pessoa, mas perder os movimentos (e a liberdade em determinados casos) e, se tornar PcD, não deve ser encarado como o fim do mundo. Existem tratamentos e meios de continuar vivendo, mesmo com as dificuldades impostas pela deficiência adquirida.
“Quando uma pessoa fica doente/se torna deficiente, é necessário que ela e sua família deem conta desse novo corpo, dessa nova rotina. O que pode não ser fácil. Num país como o Brasil, a mobilidade urbana dessa pessoa será mais difícil, pois coisas rotineiras como ir à aula, trabalhar, atividades de lazer e até fazer exames de rotina podem se tornar tarefas difíceis e, às vezes, até aterrorizantes, por causa do estigma incapacitante que existe sobre a pessoa com deficiência. A inclusão dessas pessoas tende a ser um caminho doloroso”, explica a psicóloga Marilice Minzoni.
Medicamentos, tratamentos e acompanhamento médico são essenciais para manter a pessoa viva e em condições de continuar buscando a recuperação, mas o mais importante é se aceitar. Ter uma atitude positiva ajuda demais durante o processo de reabilitação, mas o apoio da família é indispensável quanto uma sessão de fisioterapia.
O processo de aceitação não é algo que aparece da noite para o dia. Acordar e se ver usando fraldas, muitas vezes receber banho ou até comida, faz a pessoa se sentir inútil, abrindo caminho para a depressão e isolamento. Não serão remédios que resolverão isso, mas o apoio de familiares e amigos e, dependendo do caso, apoio de um psicólogo.
“O profissional da psicologia trabalha não apenas com a aceitação dessa nova condição junto ao paciente, mas também aos familiares e conviventes. Acredito que o primeiro passo para se reconhecer nesse novo papel social (de pessoa com deficiência ou familiar/amigo/parceiro de um (a) PCD) é buscar essa ajuda para identificar na situação os pontos frágeis dessa transição, e trabalhar para que haja a aceitação desse novo real, e a quebra de paradigmas ligados às deficiências existentes na nossa cultura como um todo”, enfatiza.
Mudanças em casa e trabalho
Para facilitar a vida, quem vive com uma pessoa com deficiência, precisa entender que seu pai, mãe, filho, ou qualquer outro, que o PcD não é mais aquela pessoa de alguns dias, ou meses atrás (dependendo do tratamento).
A casa precisa estar adaptada para receber o morador. Atenção redobrada com tapetes, escadas ou mesmo uma simples pedrinha. Dependendo do grau da deficiência, um mero sofá, ou cadeira no meio do caminho, pode ser uma verdadeira armadilha, principalmente nos primeiros estágios da reabilitação.
Pessoas que sofreram um Acidente Vascular Cerebral (AVC) e voltaram a andar, muitos com a ajuda de muletas/bengalas ou cadeira de rodas, são as que mais sofrem com as armadilhas dentro da própria casa, e o banheiro é um dos locais mais perigosos.
Vilões visíveis
Piso escorregadio e insegurança. O banheiro ficou em terceiro lugar como cômodo mais perigoso da casa para PcDs e idosos com (12%). Os campeões foram o quarto (34%) e banheiro (16%). A pesquisa foi realizada em 2019 pela empresa TeleHelp, especializada em saúde para a terceira idade.
Independente que seja para um idoso, ou PcD, o risco é grande. Como nenhum deficiente é igual ao outro, ele deve estudar com seus familiares e fisioterapeutas, o melhor caminho para transitar dentro de casa e fora dela. Coisas simples e muitas vezes ignoradas como tapetes soltos, mobília desorganizada ou pequenos degraus, podem impedir a pessoa de se locomover de forma segura.
A família precisa se pôr no lugar do deficiente, e principalmente, escutá-lo. A instalação de barras de segurança no banheiro, tapetes antiderrapantes, pisos com a mesma finalidade, ou um quintal seguro, ajudam a pessoa a se sentir incluída e pode evitar situações que causem síndrome do pânico.
“Muitas vezes não estamos preparados para vivenciar essas novas situações que estão à frente, e isso pode ser assustador. O papel do psicólogo é tentar compreender junto às pessoas afetadas por onde começar a ressignificar essa nova realidade, ajudar na compreensão dos direitos que se têm como PCD, e auxiliar também na busca pela quebra de preconceito que a própria pessoa ou próprios acompanhantes têm quando se trata de algumas deficiências”, explica Marilice.
Alguns equipamentos que o deficiente possui em casa, e os indicados por um fisioterapeuta, podem ajudar nesta nova etapa de vida como equipamentos que possuam controle remoto, cozinha adaptada com utensílios próprios para a pessoa, almofada e cadeira ergonômica para pessoas que passam muito tempo sentadas assistindo TV, ou trabalhando (Sim! O PcD pode trabalhar), calçados e meias específicos, dependendo do grau de mobilidade e alças adaptáveis para inúmeros itens como canetas, talheres e até escova de dentes e pentes.
Procure sempre lojas especializadas em equipamentos para deficientes físicos e dependendo do caso, apoio psicológico.
Independente de aparelhos ortopédicos, fisioterapia e casa adaptada, o PcD é acima de tudo uma pessoa com particularidades, mas ainda assim uma pessoa. E como qualquer pessoa possui sonhos e objetivos a serem conquistados.
O exemplo de Susana
De sorriso fácil e voz de locutora de rádio. Quem conversa com Susana Cristina da Silva, muitas vezes não percebe um pequeno detalhe que ela faz questão de não esconder.
Susana é cadeirante, não nasceu assim, andou até 2004 quando tinha 19 anos. Foi durante um treino de academia que a vida mudou radicalmente. “Sofri um acidente durante um treino em uma academia de musculação. O aparelho estava com defeito e a barra me esmagou no chão. Quebrei a coluna e tive uma lesão medular, por isso fiquei paraplégica”, conta.
A maioria dos PcDs não sabe a gravidade do problema, até conversar com um médico, ou simplesmente “cair na real”. Com Susana ainda no hospital, o mundo que ela conhecia se transformou da noite para o dia. “Cerca de uma semana depois do acidente, ainda hospitalizada, me dei conta de que a minha situação era mais grave do que eu imaginava. Os profissionais da saúde estavam me preparando para o meu primeiro banho de chuveiro e foi nesse momento que a minha ficha caiu, que eu entendi que meu corpo não era mais o mesmo, que eu não voltaria a andar. Minha reação imediata foi gritar desesperadamente. Eu pedi para morrer! Eu não queria viver em uma cadeira de rodas. Durante quase 2 dias me recusei a comer. Eu fiquei muito deprimida, a vida tinha perdido o sentido”.
Como em diversos casos, o esporte pode ajudar muito na recuperação de várias doenças, sejam elas psicológicas ou físicas, além de proporcionar bem estar e prevenir outros males como a obesidade, problemas cardíacos e de mobilidade. Susana era atleta antes do acidente, e ter os movimentos cerceados de uma maneira tão abrupta e irreversível, foi um dos piores momentos da sua nova vida. “Eu já era atleta antes do acidente. Fazia lançamento de dardo, uma das provas do atletismo”, conta. “Mas depois do acidente eu não quis voltar a competir. Por dois anos evitei contato com qualquer forma de esporte. De certa maneira eu culpava o esporte pelo que tinha acontecido comigo”.
O luto e repulsa pela situação duraram o tempo que Susana acreditava ser o certo. Ela teve o tempo dela, assim como todos devem ter o seu. Não existe um momento para voltar à ativa. Um dos maiores desafios enfrentados por muitos PcDs, é a comparação e a falta de empatia. É uma situação vivida por irmão ou primos, quando a família e amigos argumentam que um passou para a faculdade de medicina e o outro está tentando pela quarta vez entrar. Com Susana a motivação veio da vontade de mudar.
“Depois desse período eu senti vontade de voltar a malhar na academia, então comecei a experimentar várias atividades físicas e esportes, mas sem interesse de voltar a competir. Em 2018 eu fui experimentar o handebol em cadeira de rodas e me apaixonei pela modalidade, pois já tinha jogado handebol nos tempos de escola quando eu andava. Em 2019 representei o Brasil nos Jogos Parapan-americanos da modalidade e fui atleta destaque e artilheira da competição”, comemora.
Hoje Susana leva uma vida diferente, mas não pior do que muitos podem achar. Além do sucesso no esporte, trabalha no setor administrativo de uma grande empresa, faz academia e possui mais de 2 mil seguidores. Vive de forma independente mesmo enfrentando os desafios que qualquer deficiente enfrenta. Se isso a abala? a fez desistir? Não!
“Acredito que a dica mais importante é a pessoa aceitar e sentir a sua própria dor. É uma dor que não vai passar completamente, mas com o passar dos anos ela vai perdendo força. Se sentir vontade de chorar, chore. Se sentir vontade de gritar, grite! Mas não desista de você, conquiste sua autonomia, sua independência. Se reinvente e não tenha medo de expor a sua vulnerabilidade”, finaliza.
Para saber mais
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