VAVEL entrevista: Cesar Bravo, autor de Ultra Carnem
19 de setembro de 2018Acordar as três da manhã, descer as escadas em busca daquele copo de leite ou comer aquele restinho de pizza, adormecida na geladeira. Lá fora as árvores estão inquietas, o cachorro late, enquanto o catavento parece saudar ou temer algo escondido. Muitas pessoas não percebem, essa atmosfera.
Para muitos, é uma rotina, muitas vezes ingrata. Para outros o prelúdio de uma boa história de terror. Esse é o universo de Cesar Bravo, paulista de Taubaté que encontrou na literatura de terror, a escuridão necessária para cultivar mais e mais fãs, além é claro se divertir.
Escrever sempre foi um hobby. Antes de ter seu livro de contos “Ultra Carnem”, publicado pela DarkSide Books, muitos outros estão presentes em formato digital nas prateleiras da Amazon. A boa escrita, que mesmo em um ambiente obscuro, consegue por vezes ser divertida, foram o passaporte para o primeiro título impresso.
“Tenho uma frase que me acompanha, parte de um poema de Charles Bukowski: “Se vai tentar, siga em frente, senão, nem comece!”
Farmacêutico por formação, foram os filmes e literatura de terror dos anos 80, que moldaram sua qualidade de escrita. Em entrevista a Vavel Brasil, Cesar Bravo, revela detalhes da sua carreira, mercado editorial, bem como dicas para quem quer se iniciar na carreira de escritor.
Vavel: Desde sempre existe um fascínio pela luta entre o bem e o mal, céu e inferno. Esta guerra já foi narrada, de diversas formas, e aprendemos que o céu acaba sempre vencendo. Mesmo sabendo o final da história, porque até hoje, este tipo de narrativa faz tanto sucesso?
Cesas Bravo: Será que o céu vence?”, é a minha primeira questão.
Acredito que o ser humano se sinta desamparado desde o início dos tempos, por motivos que ainda não compreendemos totalmente. Pode ser culpa do nosso intelecto, da nossa necessidade de alcançar uma felicidade utópica, pode ser que, simplesmente, precisamos de alguém para culpar quando nossos planos caem por terra. Acreditar em uma guerra extraterrena e em anjos e demônios soprando nossas ações pode ser muito confortável para alguns, além de exercer a mágica que a civilização humana perdeu com o passar das eras. Precisamos crer em algo, é parte nossa essência.
Existe também a necessidade de “explicar o inexplicável”. Visões, materializações, curas fantásticas; a prosperidade financeira de alguém que nasce fadado ao esquecimento social. Particularmente adoro o tema, como a maioria das pessoas com as quais convivo. A questão final é: “Se o céu sempre vence, o que está acontecendo aqui embaixo?
Vavel: Você acabou enveredando para o lado do terror, suspense. O que te levou a esta vertente da literatura?
Cesar Bravo: Sou fã de horror desde que me conheço por gente. Me lembro bem de quando compramos nosso primeiro videocassete (sim, sou desse tempo…). Meu pai alugou “Stallone Cobra” e me disse que era algo muito violento para a minha idade. O grande segredo é que eu já havia assistido “A volta dos mortos vivos”, “O Exorcista” e “A Profecia”. Cobra era tão assustador quanto a fada Sininho.
O terror foi uma espécie de aptidão, sabe? Quando eu era mais jovem, passava muitas noites em claro, olhando para os cantos mais escuros e ouvindo seus sussurros. Somente essa parte afastaria a maioria das pessoas que conheço do tema horror, no meu caso funcionou ao contrário. Porque eu queria entender o que havia naquela escuridão; o que era capaz de me amedrontar tanto? Isso me levou a mais filmes, mais livros e mais escrita (algo que me alivia é colocar meus temores mais profundos no papel, foi como comecei a escrever horror).
Vavel: Muitos escritores, afirmam que a habilidade em contar histórias, em criar personagens, vem de suas próprias experiências do cotidiano, que muitas vezes passam longe de fatos realmente assustadores. De onde vem sua inspiração?
Cesar Bravo: De todo lugar. Dos trabalhos que desempenhei, das pessoas que conheci, dos livros que li e das canções que ouvi. A inspiração não é gratuita, ela é conquistada com esforço e observação incessante. Alguém que se mete a escrever precisa ser um radar, precisa ler nas entrelinhas e compor uma boa base de realidade para, só depois, transformar tudo em ficção. Conheço alguns colegas que se deprimem e se queixam de bloqueios criativos. Costumo dizer a eles que a inspiração sempre está disponível, mas que eles precisam procurar por ela o tempo todo. A boa ideia às vezes nasce na metade de um outro trabalho, em uma caminhada, ou enquanto você lava as louças para ajudar sua esposa que também ralou o dia inteiro. Tempos atrás, tive uma experiência de trabalho complicada, onde todos da equipe conspiravam uns contra os outros, um verdadeiro calvário. Com o passar dos anos, tal experiência rendeu “Ouça o que eu digo”, um de meus romances mais pesados. Às vezes surge um pequeno lampejo, uma faísca, quando essa faísca é realmente “a ideia”, o melhor a fazer é adotá-la depressa.
Vavel: Em diversas oportunidades, você afirma que um dos seus livros preferidos, é Sombras da Noite de Stephen King. O livro é um dos campeões, quando o assunto são adaptações para o cinema. Lançado em 1978, o que ele tem de tão especial, por ser considerado uma referência no gênero?
Cesar Bravo: Vamos lá. Sombras da noite tem uma verdade impressa: a realidade vivida por um homem pobre e persistente que se tornaria o mais popular autor de horror de todos os tempos. Se você conseguir ler nas entrelinhas, irá encontrar temores de um homem adulto, bem como encontrará quase todas as fobias do século XX. Conseguir traduzir esse sentimento de maneira tão… viciante, é o grande mérito do livro. Sombras da Noite norteia quase toda a ficção popular de horror nascida depois de sua publicação, e isso não é tudo. Quando o leio, sinto um futuro perigoso, o fim dos tempos, sinto a “grande escuridão” que às vezes passa perto demais dos seres humanos.
Nesse livro também encontramos a fluidez irresponsável de King, a ousadia, os traumas, o homem que vendia seus contos a preços ridículos antes de se tornar “O grande autor”. Eu ainda me considero um iniciante, e quando estou deprimido, pensando que nada me levará a lugar algum, Sombras da Noite me acalma como um abraço.
Vavel: Hoje a leitura digital, seja em tablets, celulares e pelo próprio Kindle da Amazon, tem ganhando mais e mais adeptos. Os custos de um livro digital são menores do que a edição física. Mesmo com tantos predicados, a venda de livros supera com folga as versões digitais. O Brasileiro ainda não se adaptou a esta nova forma de ler ou segurar livro, ou folear ainda é a melhor forma de fazer parte da história?
Cesar Bravo: Ler é uma experiência sensorial. Quanto maior o estímulo, maior a imersão na história. Eu leio muitos livros digitais e consigo aproveitá-los, mas muitos preferem uma luz mortiça, um quarto fechado e um livro aberto nas mãos. Existe o peso, o cheiro; as ilustrações e a arte da capa. Em uma comparação óbvia, volto ao bom e velho vinil. Você comprava um disco, admirava os detalhes, abria o encarte. Então seguia todo o ritual de colocá-lo para rodar. Rapaz, havia mágica naqueles gestos. Creio que o livro digital ainda não alcançou essa magia, ainda não superou o livro físico — e hoje em dia, me arrisco a duvidar que consiga essa proeza. Livros digitais são um acréscimo, um bônus (principalmente para quem se arrisca a publicar de forma independente com pouco ou nenhum dinheiro, alguém como eu, há bem pouco tempo).
Vavel: Sua mais recente obra, Ultra Carnem, primeiro trabalho impresso, lançado pela Darkside Books, trata de ganância, cobiça e vaidade, pecados tão comuns na sociedade de hoje. De onde partiu a inspiração? Descrever Lúcifer como “Lu”, algo charmoso e sedutor, um facilitador. Seria uma crítica a essa busca desenfreada por dinheiro, beleza e status?
Cesar Bravo: Parte da inspiração veio da minha insatisfação com a nossa sociedade egocêntrica e com toda miséria que nos cerca. Veja bem, quando você está em dificuldades financeiras, quando seu trabalho ou sua formação acadêmica mal pagam seu sustento, é inevitável que você pare e se pergunte: “Onde estou errando? O que estou deixando de fazer? Por que todas as portas continuam fechadas?”
Em posse desse sentimento, mesclado a um amor incondicional pelo tema Horror, decidi escrever um livro que colocasse TODOS em Xeque. Crianças, adultos frustrados, representantes do inferno, ninguém está seguro em Ultra Carnem. Foi a maneira que encontrei de expressar o que me tirava o sono quase todas as noites: compondo uma obra autêntica de horror. Sobre Lu, ele representa a última curva da estrada, a última porta. Lu é como aquele agiota cheio de estilo que oferece o dinheiro que provavelmente acabará com a sua vida. Mas você pensa: “Ferrado como estou? Com a conta do Banco no negativo há dois anos? Por que não?” Lu é o sacana que muitas pessoas desesperadas querem ter por perto…
Vavel: Como funciona o seu processo de escrita? Existe algum local, horário em que você se sente mais confortável para escrever?
Cesar Bravo: Na verdade, não. Escrevo quando encontro tempo — e sempre encontro tempo para escrever. Já escrevi em cadernos, em computadores de mesa, hoje tenho um notebook. Algo fundamental para mim é manter a roda girando. Preciso escrever sempre; ou faço dessa maneira ou me sinto um traidor, alguém que não merece os sorrisos do universo.
Sobre o processo em si, antes de começar costumo reler algo que escrevi no dia anterior. Então escrevo as primeiras palavras com alguma dificuldade, até que meu cérebro se lembre de como é divertido escrever. Desse ponto em diante é puro entretenimento (pelo menos até que eu termine o livro e parta para uma revisão). Tenho o hábito de manter o livro afastado por algumas semanas, até a segunda vista. Feitas as alterações necessárias, vem o processo de avaliação e a opinião sagrada dos editores, só depois, a publicação.
Vavel: Você transita de forma confortável pelo terror e suspense. Já pensou em escrever em algum outro estilo?
Cesar Bravo: Já escrevi ficção científica e romances policiais (ainda que tenham um leve odor de horror). Costumo me desafiar bastante, nunca me permito ficar confortável demais. Algo que aprendi com a escrita, é que nada do que se faz é desperdiçado. Mesmo quando você produz uma grande porcaria, pode ter cenas ou personagens que farão a diferença em uma obra futura.
Vavel: Como foi entrar para a Darkside? Como aconteceu o primeiro contato. Foi uma surpresa?
Cesar Bravo: Foi como ser admitido em Harvard! Eu estava enviando textos para a editora desde que a descobri na internet (isso foi na época em que “Os Goonies” foi publicado). Às vezes, eu tinha uma resposta da Caveira, sempre me estimulando a seguir em frente, com toda a educação e presteza que caracterizam a editora. Então, anos depois, recebi um e-mail, dizendo que um dos editores gostaria de conversar comigo.
Naquela época eu estava tão inseguro que imaginei qualquer coisa, menos receber uma proposta de publicação. Mas perto das nove da noite meu telefone tocou. Eu atendi, ciente que daquela conversa poderia surgir as respostas para as minhas preces. Foi um dos momentos mais emocionantes de minha vida; um reconhecimento por todo o trabalho duro que eu vinha fazendo. Quando desliguei o telefone, fiquei algum tempo em silêncio, imaginando o futuro e ouvindo minha esposa sorrir (essa foi a melhor parte).
Vavel: De todos os seus trabalhos, qual foi o mais difícil de produzir. Você considera Utra Carnem seu favorito?
Cesar Bravo: Sempre é o que eu estou escrevendo é o mais difícil. Mas o que mais me tomou tempo foi o primeiro — o bastardinho que ainda dorme em uma gaveta de onde não sairá tão cedo. No início você não sabe direito como estruturar um romance. Seus personagens são quadrados e sua narrativa é cheia de gerundismos. Leva tempo até entender os macetes.
Ultra Carnem sempre será um queridinho. Afinal, foi ele — e todo seu sangue — que me colocou nas prateleiras. Mas não nego que gosto de quase tudo o que produzi. Muitos são material bruto, obras que ainda precisam ser lapidadas, o que de maneira alguma tira seu brilho.
Vavel: Além de Stephen King, quais autores clássicos e da nova geração você indica, para quem está iniciando na literatura de terror?
Cesar Bravo: Clive Barker, Joe Hill, Chuck Palahniuk, Neil Gaiman, Peter Straub, Dean Koontz. E eu leria alguns Best Sellers, como Dan Brown. Leiam também autores que estão começando, publicações independentes, é um ótimo caminho para se manter atualizado.
Vavel: Assim como você, Rô Mierling e Raphael Montes, fazem parte de uma nova geração de escritores nacionais. Viver de escrever no Brasil é viável? As editoras dão o devido espaço para autores brasileiros?
Cesar Bravo: Viver de escrever por aqui é algo miraculoso, mas não é impossível (risquei essa palavra de todos os meus dicionários). Ainda assim eu continuo mantenho dois empregos — manteria três se fosse preciso. Escrever é algo além; é paixão, terapia, impulso e insanidade. Se você for capaz de ficar sem escrever, é melhor que não escreva.
O mercado para a literatura nacional ainda é tímido, mas começa a se mostrar interessado. Tive a felicidade de ser pinçado pela DarkSide, e creio que não serei um dos últimos. O que o escritor deve fazer é estar pronto, precisa ter um material de qualidade nas mãos e uma boa base de leitores. O resto vem com o tempo e (mais) trabalho.
Vavel: Que conselhos e dicas você daria para quem está iniciando ou quer seguir uma carreira de escritor?
Cesar Bravo: Que leiam e escrevam sem parar! Esse é o primeiro passo. E quando você não souber para onde está indo, procure ajuda. O mercado tem bons títulos para autores iniciantes, material técnico, se você não encontrar por aqui, aprenda inglês e traduza o que precisar! Procure cursos e autores parceiros, gente que está na mesma estrada que você. Hoje você encontra oficinas literárias, algumas com um preço bem razoável. É preciso que vocês entendam que 99% das pessoas irão desestimulá-los. Faz parte do jogo, seu um escritor se sucesso é tão difícil quando ser vocalista do Metallica. Sua família, seus amigos, todos os que se preocupam com você irão dizer: “você perdeu o juízo…”. E, meus amigos, não existe garantia alguma que você será publicado e lido, mesmo ralando como um condenado.
Persistência e trabalho são as palavras mágicas, como em todas as outras áreas.
O que funcionou para mim foi a autopublicação em E-book. Mas não pensem que será simplesmente escrever e botar na internet. Antes disso, mostre seu trabalho aos seus pares, tente passar pelo crivo de algumas antologias, participe de concursos. Depois que você receber uma boa quantidade de retornos positivos sobre seus textos, aí sim é o momento certo.
Outro ponto: estude com critério para onde enviará seus materiais. Se você escreve terror, você precisa de uma editora dedicada ao tema, o mesmo vale para Romances fofuchos ou Literatura de Não-Ficção. Não queime seus cartuchos à toa. Quando seu material tiver a qualidade que o mercado procura — e você tiver leitores que não sejam seus pais ou seus amigos de infância —, ele será capturado por uma boa editora. Tenham fé, ninguém perde até que desista.
Vavel: Depois de tanto escrever sobre mortes, sangue, lugares escuros e coisas estranhas. O que ainda lhe causa medo?
Cesar Bravo: Tudo bem, vamos falar sobre o medo. Tenho medo de um futuro incerto, dos homens maus de verdade, tenho medo de que algum acidente estúpido aniquile a minha vida. Também tenho medo de algumas doenças. Pensando bem, tenho mais medo da inevitabilidade do acaso. Nossa vida às vezes parece perfeitamente nos eixos, então calçamos nossos sapatos, damos um jeito no cabelo e ganhamos a rua. Ninguém sabe se (ou como) voltaremos para casa. Na vida adulta, aprendi e enfrentar a maior parte das minhas fobias. Mas o medo também nasce do amor, então, você pode escolher a segurança de não se ligar a ninguém ou se arriscar na chuva. O medo existe, meus amigos, mas é só para nos manter na linha.