Resenha: Ultra Carnem de Cesar Bravo

2 de janeiro de 2017 1 Por Fernando Rhenius

A capa com o sugestivo garfo. Prontos para o banquete? (foto: Fernando Rhenius)

 

Aprendemos desde sempre que existem duas forças que regem tudo ao nosso redor, o bem e o mal, representadas pelo céu e inferno. Existe uma eterna briga entre estas duas instituições que parecem nunca sair da moda e principalmente da boca dos mais fiéis.

Esta guerra, é retratada de uma forma um tanto quanto peculiar em Ultra Carnem, primeira obra impressa do escritor brasileiro Cesar Bravo. Publicado pela Darkside Books, o livro apresenta quatro contos que são interligados, podendo ser lidos fora da sequência que o autor escreveu.

Um pouco de história

O embate entre o bem e o mal não vem de hoje. Está incrustado em nossa cultura, que tudo de ruim, que cai sobre nossas cabeças é causado pelo diabo. Até quando somos nós, os causadores de todo mal, o “coisa ruim” acaba sendo nosso salvo conduto. Ele é retratado quase sempre da cor vermelha, tem chifres, rabo e solta fogo por todos os lugares. Sua casa também não é um lugar bom para se viver. Está no “andar de baixo”, tem muito fogo e muita dor. Foi assim que a igreja vendeu seu principal inimigo.

Cristianismo não se ensina com carinhos. A religião é uma estrada reta e dura, e muitas vezes, imposta. […]”. Página 23.

Uma das maiores obras que mostra bem esta guerra é o poema Paraíso Perdido de John Milton. Publicado em 1667, passou por uma revisão em 1674. Narra a luta dos anjos caídos do céu, liderados por Lúcifer, após o mesmo fazer Adão e Eva comerem o fruto proibido.

O livro

Edição com acabamento primoroso. (Foto: Fernando Rhenius)

Cesar Bravo foi muito feliz com a história e com os personagens que criou. Tudo gira em torno de Wladimir Lester, um jovem cigano com uma exímia habilidade em pintar. Passava seus dias retratando a vida e costumes de seu povo. Seu pai, uma espécie de feiticeiro, era o homem mais poderoso da tribo.

Acabou ouvindo um “anjo” que aparecia em seus sonhos. Lester acaba mexendo onde não devia, nos livros e objetos que seu pai usava em seus rituais. Assim que consegue o que seus sonhos pediam, o anjo se revelou e mostrou sua verdadeira face. Era Lúcifer. O diabo que é um exímio criador de acordos, contratos, fez um pacto com o jovem cigano. Ele acabou acreditanso em cada palavra feita por seu novo amigo.

[…] Quem domina os grupos sempre são os homens fortes e mulheres bonitas, não importa o que digam sobre a inteligência.” Página 45.

Por conta disso, toda a tribo, começou a olhar para o jovem de forma diferente. Após a morte do pai, acabou sendo levado para um orfanato católico. Foi entregue com poucas roupas e um grande pote de ouro. Lester sabia que não teria vida fácil naquele lugar. Dom Giordano o padre responsável, tentava de todos os modos talhar na mente daquele pequeno o cristianismo. O cigano não estava nenhum pouco interessado nos novos costumes, que o padre creditava como certos.

Este é o mote do primeiro conto do livro, O Abandono. Não foi apenas a doutrinação, o único obstáculo que Lester enfrenta no orfanato. A discriminação, por parte das outras crianças e o julgamento das freiras, fez os dias do pequeno serem tristes e solitários. Encontrou na pintura o escape para os problemas.

[…] O Padre Giordano dizia que Deus sempre está atento, que ele nunca abandona uma ovelha de seu pasto. No entanto, o que Deus havia feito por ela até ali? Havia permitido que nascesse para depois a colocá-la em um depósito de crianças rejeitadas, com um padre hipertenso e uma freira que não assumia a mulher que havia dentro de si. Deus a odiava, isso sim. Talvez odiasse todo mundo.” Página 68.

A única coisa que o pequeno mais estima, além de uma foto da sua falecida mãe, é um pequeno frasco com uma tinta. Não era uma tinta comum, sua consistência lembrava sangue, bem como o vermelho vivo. Suas obras tinham uma estranha beleza. Lester não retrata nada “bonito”, expressava com seus pincéis, a dor e o sofrimento do seu povo.

Dom Giordano, era reticente ao seu trabalho e principalmente gosto. Obrigava Wladimir a pintar imagens católicas para levantar fundos para a igreja. A bondade acaba quando a necessidade aparece. Mesmo com este novo acordo, que deu ao pequeno um certo status no orfanato, não ajudando em nada na convivência com os outros internos.

Cesar consegue traduzir bem a discriminação que muitos sofrem todos os dias. Cor, credo religioso ou por simplesmente não ser igual como a maioria ou como que a sociedade impõe. As pessoas daquele orfanato iriam descobrir isso da pior maneira possível que ridicularizar os outros não é legal.

A gula, um dos sete pecados capitais, e que pode ser explicada pela vontade de ter cada vez mais e mais, ocupa a mente de Nôa D´Nor, o principal personagem do segundo conto do livro, Gênesis.

Nôa deveria ser um pintor. Deveria, assim como Lester, aprendeu o dom na infância. Chegou a ter seus quadros vendidos, mas constantes bloqueios criativos fizeram, o antes propenso pintor de sucesso, ser apenas mais um na multidão.

Cada capítulo, começa com uma citação bíblica. (Foto: Fernando Rhenius)

Dizem que artistas precisam de inspiração, mas qualquer um que teve o azar de amar essas peças complicadas do universo sabe que o ingrediente mais importante do prato chama-se solidão […]”. Página 87.

Nesta época, o cigano e suas obras já eram lenda, principalmente depois dos acontecimentos ocorridos no orfanato. A tinta, segundo diziam, tinha poderes. Quem a tivesse, poderia criar os mais belos quadros. Também corria a boca pequena, que Lester tinha feito vários quadros para a igreja, muitos deles escondidos em algum porão. Valeriam ouro no mercado negro da arte.

O dinheiro move as pessoas. Nôa queria além dos quadros a tinta. Acredita que ali estava o que faltava para finalmente ser um pintor reconhecido e rico. Assim larga tudo, o que incluía sua namorada Liza, que não entendia o que se passava na cabeça do amado.

A voz grossa do homem era quase uma sentença de câncer. Sua pele era cinzenta, a camisa branca e encardida deixava alguns tufos de pelos escaparem pelos buracos. Nôa quase sentiu falta da sua própria miséria, o mundo continuava bom em desanimar homens teimosos. Seu avô costumava ser um desses – ele teimou com a bebida até vomitar pedaços do fígado em uma manhã de outono”. Página 92.

Tendo em mãos, um antigo diário que fala muito do pequeno cigano, Noa começa a trilhar um caminho obscuro em busca do seu sonho. Neste meio tempo, acaba invadindo o local onde no passado, era o orfanato.

Lá conhece Dimitri, padre que é o responsável pelo lugar. Representantes de Deus sempre sabem mais do que falam, Nôa sabia disso e precisou de astúcia e ameaças em arrancar do padre o que precisava. Também aplicou um dos golpes mais antigos da nossa civilização, o roubo, pegou antigos diários, com narrativas sobre a época em que Lester chegou ao orfanato.

Nôa avançou outra página e encontrou uma sequência de prestação de contas. Havia o nome de Lester em várias delas. Giordano estava fazendo dinheiro com a arte do menino. Ele não doava seus quadros para a igreja, ele os vendia. Também vendia para compradores particulares, da cidade e de fora dela. Pelo que Nôa entendeu, o dinheiro seria usado no orfanato, para comprar mantimentos e o que mais os órfãos precisassem. Era uma sacanagem daquelas… De repente Lester estava pintando para vestir e alimentar os safados que o acuavam.” Páginas 121.

Após conseguir o que queria, nosso herói acaba cruzando com um “amigo”, seu nome: Lúcio. De aparência duvidosa, mas com uma boa conversa, Lúcia tenta de todos os modos ajudar Nôa em sua epopeia, mesmo o pintor não revelando qual seria. Seja com caronas em momentos decisivos ou aparecendo literalmente do nada, o estranho amigo parece prever os passos do pseudo pintor. A cegueira pelos trabalhos e a tinta de Lester leva Nôa até uma cidade distante.

Para sua surpresa, ele não era o primeiro a acreditar na lenda do antigo cigano. João Paulo Portas, aguardava o fim dos seus dias em um asilo de uma cidade com o sugestivo nome de Acácias. As perguntas seriam respondidas, acreditava Nôa. Ele finalmente ficaria rico e famoso?

(Foto: Fernando Rhenius)

Do outro lado da moeda estava Marcos Cantão. O técnico de informática, tinha uma vida simples e complicada. A esposa era pouco prestativa e estava acima do peso. Marcos literalmente fugia das investidas da mulher, em todos os sentidos. Para “ajudar” seu filho nasceu com má formação. Era uma criança “especial”.

Em um emprego sem grandes perspectivas, com um carro velho, casa velha e uma família que tinha apenas seu filho como principal objetivo de vida, Marcos não tinha um grande ânimo em acordar todos os dias para trabalhar.

O Pagamento, é o conto mais divertido e assustador do livro. Divertido pois quem tem privações na vida, principalmente financeiras, acaba transformando pequenos problemas em grandes epopeias. Marcos não gostava da mulher. Os termos que usava para definir ela e suas ações no dia a dia são a parte mais divertida do livro.

Pergunta redundante. Bastaria um olhar para aquela camisola branca que ficaria sobre ela o resto do dia para perder o apetite. Não costumava reparar muito em Odeta, mas achava que aquele trapo estava nela há duas semanas – fazia cinco dias que Marcos tinha percebido um enorme escorrido de molho de macarrão no tecido. Ainda estava lá. Jesus… A mulher com quem se casara parecia um galão de água mineral naquela maldita roupa.” Página 180.

Com poucos clientes, Marcos acabava usando da malandragem para conseguir alguns reais a mais. Seja mentindo para clientes ou aumentando o preço das peças de computador. Qualquer trocado a mais era motivo de festa. Marcos não ligava para remorso.

Tudo muda no dia que ele precisa arrumar o computador de uma estranha loja. Sofia uma estranha senhora, vende tudo que é tipo de material religioso. Ossos, ervas para trabalhos, qualquer coisa.

Marcos não gosta do ambiente, pois um ar pesado circunda aquelas paredes, mas precisa trabalhar e dinheiro era algo raro em sua carteira. O concerto do PC acabou saindo mais caro do que Sofia imaginava, Marcos tinha mentido sobre o valor. Como ela não tinha todo o dinheiro, fez um trato com o técnico de informática.

Foi aí que Marcos conheceu a ciganinha, escultura de uma cigana. Sua aparência era de uma sensualidade ímpar. Seus olhos seguiam os de Marcos, qual fosse a direção. Arrepios passaram sobre seu corpo. A estranha escultura foi criada por um certo Wladimir Lester.

Aquilo passava dos limites. Marcos não conseguia mais ver as imagens. Mas a verdade é que tampouco conseguia parar de olhar. Porque gostava. A moralidade ordenava que desligasse depressa aquela obscenidade, que parasse de se comportar como um monstro ainda pior do que o assassino – o Açougueiro pelo menos, não devia ficar admirando as fotos do próprio trabalho em um site vagabundo. Enfim, a consciência falou mais alto e Marcos deixou os outros corpos para ver o único capaz de espantar um demônio de seus ombros. Ele precisava descobrir um detalhe naquele último corpo encontrado.” Página 252.

A estranha senhora pediu para que Marcos chegasse perto da estátua e fizesse um pedido. Ele seria muito maior do que o dinheiro que ela acabou nunca pagando para ele. Incrédulo, Marcos acabou aceitando e fez o tal pedido. Foi embora, ficou com medo de tudo aquilo. Não acreditava que alguma coisa fosse acontecer.

Com o passar dos dias, Marcos começou a notar mudanças em sua casa. Sua esposa, Odeta estava disposta a começar uma dieta, seu filho Randy que mal conseguia formar mais do que três palavras, estava falando um português correto, e principalmente raciocinando. Até o trabalho começou a ser mais próspero.

A vida daquela família mudou muito em tão pouco tempo. Marcos agora era um rico empresário, sua mulher não era mais gorda e seu filho um dos melhores alunos da escola. Ao invés de aproveitar esta nova fase, Marcos acabou fazendo o que muitos homens fazem, começou a pensar com a cabeça de baixo. Rico, tinha várias amantes. Dinheiro realmente é um imã para mulheres. Nesta mesma época, vários assassinatos começaram a ocorrer. A imprensa tratou e chamar o bandido de açougueiro. É nesta época que a vida de Marcos começa a ter um grande revés.

As ilustrações dão medo! (Foto: Fernando Rhenius)

Existiria alguma ligação entre as mortes e a sua nova vida? Poderia a ciganinha, ter influenciado os rumos do técnico de informática? Ou o fato da promiscuidade, deixando sua família de lado, ter começado a pesar?

O último capítulo do livro, poderia facilmente ser confundido com a última fase de um desses jogos de guerra ou de zumbis. O Inferno, leva o leitor para as respostas e dúvidas que foram aflorando nos primeiros três contos, além de conhecer em detalhes o andar de baixo.

Pessoas descrentes acabam não temendo seus medos. Para muitos a privação de coisas simples como um abraço, um eu te amo, ou uma noite tranquila depois de um dia de trabalho árduo passam longe. Amores perdidos, desemprego e a solidão. Motivos não faltam para que as pessoas percam a fé e o medo. São nessas horas que Lúcifer aparece com seus acordos que só beneficiam ele próprio.

– Eu tive uma discussão com um cara uma vez. E ele me disse que eu não poderia vencê-lo em uma disputa justa. Bom… Tudo se resume a isso. Ele sequestra pelo amor e eu pelo favor; a dor, nós dois usamos. E olha que eu vinha ganhando fácil há muito tempo, mas essa porcaria de internet… Mulher, isso acabou comigo. Agora todo mundo conhece tudo, lê tudo e desacredita em tudo. Nem eu ou Ele – apontou para cima – valemos muita coisa se não acreditarem em nós […]. Página 286.

Lucrécia era uma garçonete, em um desses bares de subúrbio. Solteira, foi violentada quando era mais nova. Por conta disso, um aborto precisou ser feito. Sem sonhos, ela apenas sobrevivia. Não tinha qualquer perspectiva de vida melhor.

Em certas noites do mês, pessoas suspeitas frequentavam seu estabelecimento. Lúcio era o mais bonito e enigmático deles. Aim era um negro estiloso, enquanto Pedro era um gordo nojento. A garçonete estava curiosa sobre aquelas conversas de dominação e poder. Como a curiosidade matou o gato, acabou dando bandeira. Os estranhos fregueses precisavam apagar qualquer um que ouvisse demais.

Foi aí, que Lucrécia conheceu literalmente o diabo, que acabou chamando carinhosamente chamado de Lu. Para mim a melhor sacada de todo o livro. Lu de alguma forma gostou daquela mulher que não tinha medo de nada, principalmente dele. Era uma pessoa extremamente cerebral, fria, os sentimentos foram se esvaindo com o passar dos anos e dos inúmeros tombos da vida. A funcionária perfeita para os planos do Grande Vermelho.

 – São homens se comportando como homens. Quando o interesse se sobrepõe à razão. É a vez dos exageros. Estamos sob pressão, padre […]” Página 350.

Assim ela entra na casa do seu mais novo amigo e chefe. A narrativa extremamente visual, faz o leitor, passear por todos os cômodos, salas e ambientes do inferno. Assim como os leitores, Lucrécia tem muitas perguntas, que são respondidas a medida que a nova recruta passeia pela base.Lu não a levou para o andar de baixo, por pura bondade ou simpatia. Fez um acordo, precisava que ela buscasse uma pessoa. A partir deste ponto, começa uma verdadeira caça ao rato.

– Dizem que a segunda função das velas, logo depois de fornecer luz, é guiar as almas até o caminho dos justos. […]” Página 355.

Em muitos livros o enredo deste tipo de história sempre leve para o final óbvio. O bem sempre vence o mal. Não é o caso de Ultra Carnem. Cesar Bravo, tenta mostrar o dia a dia do subsolo do mal. Os planos para dominar o mundo sempre existiram. O Coisa Ruim, tenta de todos os modos oferecer seus irresistíveis acordos, para os de mente fraca e necessitados. Em momentos de extrema necessidade, quem não se sentiria tentado a aceitar?

Mais Cesar Bravo

Sendo esta a primeira obra impressa do autor, o extenso catálogo de títulos pode ser conferido aqui. Para aumentar a experiência de leitura, Cesar acabou criando uma playlist muito boa. Aconselho a leitura de “Além da Carne: arquivos perdidos”, livro que antecedeu Ultra Carmen.

Uma resumida biografia do autor (texto extraído do site da Darkside)

Nascido em 1977, em Monte Alto, São Paulo, foi apenas recentemente que Cesar Bravo deu voz à sua relação visceral com a literatura. Durante sua vida, já teve diversos empregos — ocupando cargos na indústria da música, na construção civil e no varejo. É farmacêutico de formação. Bravo publicou suas primeiras obras de forma independente, e em pouco tempo ganhou reconhecimento dos leitores e da imprensa especializada. É autor e coautor de contos, romances, enredos, roteiros e blogs. Transitando por diferentes estilos, possui uma escrita afiada, que ilumina os becos mais escuros da psique humana. Suas linhas, recheadas de suspense, exploram o bem e o mal em suas formas mais intensas, se tornando verdadeiros atalhos para os piores pesadelos humanos. Saiba mais em facebook.com/cesarbravoautor.