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Endurance tratado a sério!
Diesel Gate, como o escândalo do grupo VW mudou o Mundial de Endurance

O ser humano precisa de um escândalo para chamar de seu. Seja na política, agora mais do que nunca, ou envolvendo celebridades, de tempos em tempos a mídia precisa de um “up” para vender jornais ou dobrar seus acessos na internet.

No Brasil não é diferente. Quando celebridades se separam, a grande mídia fica em polvorosa. Mesmo que o escândalo esteja na cabeça de quem o criou. Mas existem os reais, que depõem presidentes, prendem pessoas e pasmem, muitos voltam como políticos ilibados, como se nada tivesse acontecido.

Em 1972 surgiu um escândalo que serviria de base para muitos outros e que será o prelúdio do que escreverei adiante. Mas para isso, vamos entendê-lo. Naquele ano, o então presidente dos EUA, Richard Nixon, se envolveu no que conhecemos como caso Watergate.

O prédio Water Gate que entrou para a história. (Foto: Wikipedia)

De acordo com as investigações, durante a campanha eleitoral de 72, a sede do comitê do partido Nacional Democrata, que ficava no Complexo Watergate, Cinco pessoas foram presas quando tentavam fotografar documentos da invasão da Baia dos Porcos (tentativa de invadir Cuba) em 1961. Além disso, o grupo tentou instalar aparelhos de escuta no local.

Entretanto, as investigações dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, que trabalhavam no jornal The Washington Post, ligaram membros da Casa Branca à invasão do escritório do Partido Democrata. Como resultado das investigações, em 1974, Nixon renúncia, além do indiciamento de 69 pessoas, sendo 48, ligadas à administração Nixon. O resto é história.

E o Diesel Gate?

Escândalo envolveu motores a diesel da Audi e VW. (Foto: Divulgação VW)

Desde então, o termo “gate” é utilizado em escândalos e crises. Ele voltou às páginas dos jornais em 2015, quando a Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos emitiu um alerta que a VW e a Audi violaram a lei Clean Air, que regulamenta o nível de emissões naquele país. Porém no mundo real com os controles desligados os carros emitiam até 40 vezes mais óxido de nitrogênio.

Ainda segundo as investigações, a Volkswagen colocou este programa em cerca de onze milhões de carros em todo o mundo, e em meio milhão só nos Estados Unidos, em modelos de 2009 até 2015.

A princípio, para tentar limpar a sua imagem, a VW chamou proprietários para que atualizassem os módulos dos seus carros. Entretanto, vários clientes queixavam-se de diversas alterações após a intervenção, as mais citadas foram o aumento do consumo, a perda de potência e o aumento do ruído do motor. Alguns consumidores também reclamaram de problemas mecânicos ou erros no computador de bordo, entre outros.

Não demorou para que processos contra o fabricante brotassem em todo o mundo. E com os processos, vieram as indenizações e o dinheiro começou a evaporar dos cofres do fabricante alemão.

Aliás, no Brasil não foi diferente, segundo a Agência de Proteção Ambiental (EPA) nos EUA, 482 mil veículos com motores a diesel violam os padrões federais, entre eles Jetta, Beetle, Golf, Passat e o Audi A3. Os veículos foram fabricados entre 2009 e 2015.

Por conta das pressões, no dia 23 de setembro de 2015, Martin Winterkorn, presidente executivo do grupo VW, pede demissão. Em seu lugar, assume Matthias Muller, presidente da Porsche.

Multa bilionária

Por conta de tantas irregularidades, o Departamento de Justiça dos EUA aplicou multas astronômicas ao grupo VW. De acordo com estimativas, o total das sanções chegaram a US$ 48 bilhões. Valor que começou a correr a partir do dia 5 de janeiro de 2016.

O dinheiro além de pagar os inúmeros processos, fez a VW e Audi recomprar os carros adulterados. O dinheiro estava escorrendo dos cofres da montadora alemã. Para conter a sangria, tudo o que era considerado supérfluo, seria riscado da folha de pagamento. Não deu outra. Os programas esportivos estavam indo para a guilhotina.

Considerada a joia da coroa, os programas da Porsche e Audi no Mundial de Endurance eram o supra sumo de tecnologia híbrida na época. Em outras palavras, o Porsche 919 apresentado em 2014, sob as regras da classe LMP1, utilizava a energia cinética produzida no eixo dianteiro durante a frenagem é convertida em energia elétrica.

Tecnologia de ponta

Porsche 919 utilizava o mais avançado sistema híbrido do WEC. (Foto: Porsche)

O segundo sistema de recuperação está instalado no coletor de escape, onde o fluxo de gases do escape da turbina aciona uma segunda em paralelo com o turbocompressor.

Ele utiliza o excesso de energia a partir da pressão de escape que, de outro modo, escaparia pelo meio ambiente. A tecnologia utilizada é a variável da adaptação da geometria da turbina gerada pela pressão dos gases do escapamento. Ela aciona as turbinas, mesmo a baixas rotações do motor e de baixa pressão.

A turbina adicional está ligada a um gerador elétrico. A eletricidade produzida – juntamente com aquela gerada pelos KERS no eixo dianteiro – é temporariamente armazenada em células de bateria de lítio.

Quando o piloto aciona o sistema, a potência adicional de mais de 400 hp é liberada. Esta energia é aplicada no eixo dianteiro pelo motor elétrico, e transforma temporariamente a 919 em um carro de tração integral com alimentação do sistema de cerca de 900 hp. Para cada circuito.

O fabricante encerrou sua participação no WEC em 2017, focando seus recursos em programas como campeonatos GT3 e as séries da Porsche Cup ao redor do mundo. Além disso, para passar uma imagem de engajada e ecologicamente correta, montou às pressas uma equipe na Fórmula E.

Audi desistiu antes

R18 da Audi tinha um sistema híbrido, e motorização diesel. (Foto: Audi)

Com a Audi as coisas aconteceram antes. A montadora estreou em 2005 o LMP1 R10, primeiro protótipo com motorização a diesel. O sucesso foi tanto que em 2007 foi a vez da Peugeot e seu 908 HDI LMP1 travar uma guerra campal com o fabricante das quatro argolas.

Com os regulamentos híbridos a partir de 2012, ano do renascimento do WEC, a Audi apresentou o R18 e-tron. Seu sistema não era tão avançado quanto o da Porsche, mas não era nada antiquado.

O R18 e-tron era equipado com o sistema de recuperação de energia (Audi e-tron), sendo o primeiro protótipo-esportivo considerado “híbrido”, a vencer as 24 Horas de Le Mans na edição de 2012.

Ele era equipado com motor V6 diesel (utilizado para tração nas rodas traseiras) e um motor elétrico (utilizado para tração nas rodas dianteiras) que é ativado quando o carro está acima de 120 km/h, por questões de regulamento da categoria, fazendo com que as rodas dianteiras tenham tração independente o qual transforma o carro em AWD.

O motor elétrico é alimentado por um sistema de recuperação de energia cinética (KERS) que é armazenada durante as frenagens eletricamente em um flywheel antes de ser usada no eixo dianteiro durante a aceleração.

Toda essa tecnologia custou a Audi o encerramento do seu programa em 2016, seguindo o caminho da irmã Porsche, a Fórmula E e os programas de clientes com o R8 LMS GT3.

ACO e o sinal de alerta no Mundial de Endurance

Com a saída prematura e justificável do grupo VW, o ACO precisava fazer algo, ou perderia o status de Mundial, voltando aos bons tempos do Intercontinental Le Mans Cup. Assim, para 2018 a organização do WEC resolveu “unir” duas temporadas em uma.

Anunciada como temporada 2018/19 do Mundial de Endurance, o certame teria corridas que começaram com as 6 Horas de Spa-Francorchamps no dia 05 de maio de 2018, e findava com as 24 Horas de Le Mans entre os dias 15 a 16 de junho de 2019. Foi a primeira vez na história do Mundial de Endurance que uma temporada teria duas Le Mans. A primeira realizou-se nos dias 16 a 17 de junho de 2018.

Ficou estranho? Muito. Alongar o calendário era o menor dos problemas do ACO. Como preencher o abismo criado pelo diesel gate? Para manter as equipes (e patrocinadores) envolvidos, as Equipes de clientes da classe LMP1 passaram a ser finalmente valorizadas.

A equipes de clientes

A temporada 2018/19 a Toyota competiu literalmente sozinha. (Foto: FIA)

Agora, teriam reais condições de ganhar da Toyota no geral. O BoP daria aquela ajuda marota. Para se ter uma ideia, a Rebellion Racing, ByKolles, Ginetta, Dragon Speed, SMP Racing e a Toyota estavam confirmados na classe LMP1.

Esse batalhão de clientes seriam páreos para a robustez da Toyota? Das oito etapas, apenas a Rebellion Racing conseguiu superar os japoneses na etapa de Silverstone. Nas demais, a Toyota não teve adversários que superassem o TS050 Hybrid.

Para “ajudar”, as equipes que possuíam um Oreca 07, tiveram os níveis de potência ajustados para baixo, pois o BoP da classe LMP1 tirou potência da Toyota. As chances de uma equipe da classe LMP2 vencer em Le Mans, era um sonho real.

A melhor equipe LMP2 nas duas provas em Le Mans foi a Signatech Alpine com um quarto lugar em 2018 e um sexto em 2019. Mesmo com o domínio da Toyota e uma certa estabilidade, algo para atrair fabricantes que pudessem pagar as inovações tecnológicas em hibridização ainda eram desconhecidas. Algo precisava ser feito, ou o WEC acabaria como o Grupo C nos anos 90.

Do limão se fez uma limonada

Mesmo que a temporada com dois anos de duração tenha feito um razoável sucesso, algo mudaria. Na história do WSC (World SportsCar Championship) e do WEC, o que faz a máquina girar não é ter pilotos de renome como na F1. Ajuda, mas o que realmente paga a conta são as equipes de fábrica.

Mesmo com a Toyota em sua zona de conforto, a direção do Mundial queria mais. Assim, no dia 14 de junho de 2019, o ACO em parceria com a FIA, anunciaram a classe Hypercar, dando fim aos protótipos LMP1.

De acordo com a ACO, o objetivo é “criar uma classe de alto nível com igualdade de condições e limitar a quantidade de ganhos de desempenho que poderiam ser encontrados através de um maior investimento”.

Além disso, os regulamentos teriam a duração de cinco anos. Em comparação com os regulamentos da classe LMP1, os novos modelos terão peso alterado, para aproximadamente 1030 kg e potência na casa dos 750 hp. As mudanças devem fazer os modelos marcarem 3m30s, por volta no circuito de Le Mans.

Haverá também medidas de contenção, para equiparar modelos com tração nas quatro rodas em comparação com as entradas de tração nas duas rodas.

A IMSA entra na história para ajudar o Mundial de Endurance

Protótipos híbridos mais acessíveis e que poderiam competir tanto no IMSA quanto no WEC. Assim temos os Le Mans Daytona Hybrid (LMDh) e Le Mans Hypercar (LMH) respectivamente. No Campeonato Mundial de Endurance, os dois carros competem na categoria Hypercar.

Os construtores que optarem pelo regulamento da classe LMDh, por outro lado competem no Mundial de Endurance e IMSA. Podem adquirir um chassi LMP2, e montar ali o seu projeto, muito mais em conta do que desenvolver algo do zero como nos LMH.

Na classe LMH, uma montadora pode criar seu próprio veículo desde o início, ou melhor, da frente até a traseira. Porém, tudo o que estiver associado ao sistema híbrido, se presente, deverá estar localizado à frente das rodas do veículo.

Mais benesses nos EUA

Para competir no LMDh, as equipes devem depender fortemente de peças disponíveis comercialmente. O monocoque e a suspensão do carro devem possuir “design” LMP2 de última geração dos quatro construtores licenciados. Esses construtores são Oreca, Dallara, Ligier e Multimatic.

Todos os veículos compartilham um sistema híbrido montado atrás do eixo traseiro. A Bosch fornece a unidade geradora de motor (MGU), a Williams Advanced Engineering fornece a bateria e a Xtrac fabrica a caixa de câmbio; todas as três empresas colaboram no design geral. Contudo, o fabricante é responsável pelo desenvolvimento da aerodinâmica, fornece o componente de combustão interna do motor e é livre para projetar a eletrônica como achar melhor.

Assim, apesar de terem designs muito variados, todos os veículos devem obedecer aos mesmos padrões de desempenho estabelecidos na regulamentação. As janelas de desempenho dentro das quais cada veículo deve se enquadrar são um conceito central tanto do LMH quanto do LMDh. Aliás, a potência máxima, a força descendente aerodinâmica e os objetivos de arrasto são os mesmos.

Assim, de brinde, as equipes podem competir na principal classe da IMSA, a GTP. Além de salvar o WEC, o ACO e a FIA ainda deram (e pediram) uma ajuda para a IMSA.

E o futuro do Mundial de Endurance?

Após ouvir fabricantes, o Mundial de Endurance voltou a atrair fabricantes. (Foto: WEC)

O ACO/FIA conseguiram sair de uma crise que poderia matar o Mundial de Endurance, nos mesmos moldes que foi o fim do Grupo C em 1992. Foram necessários 20 nos para que o Mundial de Endurance se reergue-se e voltasse a ter relevância no automobilismo internacional.

Em outras palavras, palmas para os dirigentes? Nem tanto. Se o escândalo do grupo VW não existisse, os regulamentos da classe LMP1 continuariam cobrando um preço alto e, em tese, poderia também matar o Mundial.

Por fim, para Ricardo Grillo, jornalista português, e um dos maiores conhecedores de endurance, a “teimosia” do ACO em sua eterna Guerra Fria com a IMSA, não ajudou em nada nos momentos de crise do campeonato.

“O Diesel Gate levou ao abandono da Audi e depois da Porsche, mas no imediato a solução apresentada pelo ACO era ainda mais cara e complicada que a anterior e já muito cara classe LMP1-H”, explicou Grillo.

“Uma nova classe de LMP1 que deveria conseguir sair das boxes e rodar até Tetre Rouge (no circuito de Le Mans) no modo 100% elétrico. Em seguida, na ausência de candidatos, lembraram-se de fazer algo ainda mais exótico e não menos caro, com a ideia de transformar “Hypercar” de estrada (que custam 2 ou 3 milhões de dólares) num carro de competição que teria um valor absurdo”.

“Em seguida disseram que afinal também podia haver verdadeiros protótipos e desenharam um regulamento para encaixar o pesado Aston Martin Valkyrie com um peso mínimo de 1100 kg”.

Uma luz no final do túnel

Ricardo pontua que os elevados custos e principalmente, o bom senso prevaleceram. “O bom senso veio a seguir com as negociações com os americanos e o pragmatismo destes com a classe LMDh. Com componentes comuns e custo bem mais baixo. Mas como a Toyota e Glickenhaus já tinham aderido ao conceito Hypercar não puderam recuar e acabaram por juntar os dois conceitos, baixando a potência para 670 cv e o peso para 1040 kg”.

“O ideal teria sido usar as regras dos americanos (IMSA) desde o início, facilitando o equilíbrio de plataformas e atraindo as montadoras pelo baixo custo e a simplicidade dos regulamentos. Mas na realidade temos agora as duas classes em conjunto e é com isto que temos que viver. O que vai permitir uma nova era de ouro no Endurance”, comemora o jornalista.

 

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