Resenha: Confissões do Crematório

16 de agosto de 2016 2 Por Fernando Rhenius
(Foto: Fernando Rhenius)

(Foto: Fernando Rhenius)

Aprendemos na escola que nascemos, crescemos, reproduzimos e morremos. A grosso modo, esta é a nossa vida aqui na terra. Muitos acreditam que vão para o céu, outros que por conta de uma vida cheia de “pecados”, irão para o andar de baixo.

Independente da sua crença, opção religiosa, algo é realmente factual. Vamos morrer. Como encaramos esta passagem? Qual os ensinamentos que a vida nos dá, para quando chegar a hora, encararmos com serenidade este momento? Por que tememos tanto falar sobre isso?

Recentemente li, O Cemitério de Stephen King. A história tratava obviamente de morte, e a obsessão de Louis Creed de trazer seu filho de volta a vida. Não deu muito certo, mas ele tentou. Creed deixou de lados as convenções e conceitos pré-estabelecidos para encarar a morte do filho de frente. Por mais que seja uma excelente obra de ficção, quem nunca quis que um parente, amigo ou ídolo voltasse a vida. Dizem que Elvis não morreu, pois, a morte não era muito legal, mas faz parte do jogo.

Seja o desejo de Louis Creed de enganar a morte, ou o de milhares de pessoas temerem ela, o livro Confissões do Crematório de Caitlin Doughty, lançado pela Darkside Books tenta mostrar que esta fase da vida pode não ser tão dolorosa quanto aprendemos que seja.

“As pessoas no frigorífico provavelmente não andariam juntas no mundo dos vivos. O homem negro idoso com infarto do miocárdio, a mãe branca de meia-idade com câncer de ovário, o jovem hispânico que levou um tiro a poucos quarteirões do crematório. A morte os levou até ali para uma espécie de reunião das Nações Unidas, uma discussão em mesa redonda sobre a não existência. ” Página 28.

Vai existir dor é claro. Mas não como aprendemos. Foi com esse pensamento que Caitlin, uma intrépida jovem, que tem um fascínio pelo mórbido acaba conseguindo o emprego em um crematório, o Westwind Cremation & Burial em São Francisco. Não é o tipo de emprego padrão que uma jovem estudante almeja, mas Caitlin era diferente. Gostava de tudo relacionado a morte.

Em um ambiente, que deveria ser triste, o último lugar de vidas boas e ruins, a jovem encontrou pessoas que não viam os últimos momentos de uma pessoa como algo pesado. Assim com um vendedor, um professor, trabalhar em um crematório era um trabalho como qualquer outro, com suas características pouco habituais, mas que tinham contas que precisavam ser pagas e principalmente, gerar lucro. Morrer dá dinheiro.

“A primeira vez que espiei um corpo em cremação pareceu uma transgressão abominável, apesar de ser exigido pelo protocolo da Westwind. Não importa quanta capas de discos de heavy metal você já tenha visto, quantas gravuras de Hieronymus Bosch das torturas do Inferno ou mesmo a cena de Indiana Jones em que o rosto do nazista derrete – você não vai estar preparado para testemunhar um corpo sendo cremado. Ver um crânio humano em chamas é mais intenso do que os voos mais loucos da sua imaginação são capazes.” Página 32.

Esse é o principal dilema da autora que é adepta da good death (boa morte). Ela não aceita que a morte seja encarada como um comércio, como algo que se possa comprar em uma prateleira de supermercado. A narrativa é muito rica em detalhes. Muitas vezes podemos até rir de algumas situações, que de tão trágicas e bizarras acabam se tornando cômicas.

Referências bibliográficas. Um diferencial. (Foto: Fernando Rhenius)

O livro é dividido em capítulos. Cada qual revela os últimos momentos de uma pessoa, ou partes dela, antes de ser consumida pelas chamas. Ali não existem pessoas ricas, pobres. O forno não diferencia isso. Ele está incumbido de transformar em cinzas pessoas que puderam pagar. Mesmo assim ele era democrático. Quem não tivesse dinheiro para o processo, era bancado pelo estado.

A rotina de um crematório, se resume a maquiar corpos para que filhos, maridos e mães possam dar as últimas despedidas. Atender famílias que tinham perdido pessoas e que achavam absurdo ter que pagar para que fossem queimados. Até na hora da morte é necessário gastar? Diziam.

Com sua viés humanitária, Caitlin se incomodada como aqueles últimos momentos eram tratados. Existia o mal cheiro, as formas em decomposição, e até uma certa negligência por quem estava habituado com aquilo. O que realmente deixava a autora estarrecida era que as pessoas encaram tudo aquilo como algo que deveria ser escondido, que era o mal. Se a pessoa morreu, ela mereceu aquilo, e não por estar velha ou doente. E tudo precisava ser rápido. Ninguém gosta de pensar que vai estar dentro de um forno crematório ou em um caixão a sete palmos abaixo da terra, mesmo sendo esse o destino de todos nós.

“O hospital se apresentava como um lugar positivo da cura com tecnologia recente e atraentes gravuras de arte havaiana nas paredes. Tudo – a maca falsa, o necrotério secreto no porão – era cuidadosamente preparado para esconder a morte., para distanciá-la do público. A morte representava uma falha do sistema médico; não seria permitido perturbar os pacientes e famílias.” Página 59.

A grande sacada da obra, se comparada com outros títulos é a forte pesquisa. Caitlin explica nos diversos capítulos um pouco de como a morte é encarada nas mais diversas civilizações e épocas. Para isso entrevistou professores, historiadores e leu, leu muito. O resumo bibliográfico no final do livro é incrível. Podemos considerar o livro não como um mero amontoado de memórias, mas as vertentes da morte em diversas situações e contextos. Sem achismos. Não que as memórias de Caitlin não fossem importantes, são elas que norteiam toda a narrativa, e é sua sensibilidade que dá um sabor a tudo. Ter um embasamento sustentado por fatos comprovados tem o seu valor.

Com um texto leve, mesmo com termos técnicos dos diversos processos de um crematório, a obra de Caitlin é indispensável para quem quer saber como funciona as entranhas de um crematório, que trabalhou por muito tempo com algo que todos evitam falar ou encarar.

Caitlin. Olhando assim não parece gostar tanto da arte de morrer. (Foto: Site da autora)

Por conta dessa obsessão pela morte, a autora se formou na Cypress College of Mortuary Science, uma das mais importantes faculdades funerárias dos Estados Unidos. Com o diploma, virou uma ativista da causa mortuária, tentando disseminar os benefícios do fim da vida. Deixar tudo mais vivo, bem como combater os lucrativos rumos, que a indústria funerária tem na América do Norte.

Caitlin mantem um site e um canal no Youtube. Nada de sangue escorrendo pela tela, vísceras espalhadas pelo ambiente ou a linda autora com um cutelo e roupa cirúrgica segurando um crânio. Os trabalhos apresentados nos dois espaços, são uma continuação do material encontrado no livro, um local de debates e pontos de vista.

(…) Um cadáver não precisa que você lembre dele. Na verdade, não precisa de mais nada – fica mais do que satisfeito de ficar ali, deitado, apodrecendo. É você que precisa do cadáver. Ao olhar para o corpo, você entende que a pessoa se foi, que não é mais uma participante ativa do jogo da vida. Ao olhar para o corpo, você se vê nele e sabe que também vai morrer. O contato visual é uma chamada à auto percepção. É o começo da sabedoria.” Página 178.

Seja por curiosidade, adoração ou apenas material de estudos, Confissões do Crematório é indispensável para quem quer entender um pouco mais sobre este momento final da vida de qualquer ser humano, receber uma boa aula de história, se comover e por que não dar algumas risadas das situações pitorescas enfrentadas por Caitlin Doughty?

O livro

Com um conteúdo original, o livro em si é um capítulo à parte. Em capa dura, com cores vivas, é mais um ótimo trabalho gráfico da DarkSide Books. Quem conhece a editora se deleita com a qualidade dos livros, não só a parte autoral. As páginas feitas de um papel mais grosso que o habitual, nos dão a impressão de que o livro tem mais de 100 anos, algo que foi desenterrado ou achado nas profundezas de alguma biblioteca.

Outros títulos como o Demonologista e os Condenados de Andrew Pyper e Exorcismo de Thomas B. Allen são verdadeiras obras de arte. Podem ser considerados itens de colecionador. Por mais editoras assim no Brasil.

Referências

KING, Stephen . O Cemitério2. ed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013. 424 p.

DOUGHTY, Caitlin. Confissões do Crematório. Rio de Janeiro: Darksite Books, 2016. 256 p.

DOUGHTY, Caitlin. Order of the good death. 2016. Disponível em: <http://www.orderofthegooddeath.com>. Acesso em: 16 ago. 2016.