O que podemos esperar da trilogia Bill Hodges

19 de novembro de 2016 4 Por Fernando Rhenius
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(Foto: Fernando Rhenius)

Stephen King começou a ser um autor de sucesso no final dos anos 70, começo dos 80. Seus principais trabalhos e adaptações para o cinema foram realizadas nesta época. Se formos relacionar os autores com maior representatividade naqueles anos, o mais ilustre morador do Maine, com certeza será lembrado.

Desde aquela época, suas obras inéditas são aguardadas de forma religiosa. Cada vez mais, seus leitores fiéis querem sangue, fantasmas e terror. Muitas vezes as coisas não acontecem assim. Uma das suas últimas obras, Joyland causou surpresa. Primeiro por ser um livro pequeno, algo raro nas obras de King. O segundo ponto é a história. Muitos torceram o nariz, esperavam mais de um parque de diversões e do fantasma que ali habitava.

Joyland é o livro perfeito para quem quer começar a entrar no mundo de Stephen King. É pequeno, leve e um pouco previsível, o que não pode ser considerado um defeito. Encarar obras “pesadas” com IT, O Cemitério, Misery, pode afugentar os corações e mentes mais sensíveis.

Quando King anunciou a trilogia Bill Hodges, uma história racional de um policial aposentado que precisava solucionar um crime antes que o assassino matasse meio mundo, causou uma enorme perspectiva no meio literário. King estava entrando em um mundo novo, o suspense policial.

Sem fantasmas, sem cemitérios e sem palhaços saindo pelos bueiros. Qual seria o tom que o autor iria pôr em um tipo de narrativa, na qual não estava acostumado?

O primeiro livro, Mr. Mercedes foi publicado originalmente em 2014. Chegou no Brasil pela Suma de Letras em 2015. Seja nos EUA como aqui, o início desta trilogia fez enorme sucesso, tanto pelos leitores fiéis quanto pela crítica. É um livro leve, mesmo em se tratando de mortes, e rápido para ler. Na sequência vieram, Achados e Perdidos e Último Turno.

Qual o segredo? Os personagens? A história? Ou Stephen King?

Os principais personagens

Bill Hodges, o detetive, foge do estereótipo de mocinho musculoso, com belos olhos azuis e barba no estilo lenhador. Ele é velho, está na faixa dos 60 anos, obeso, cardíaco e com aspirações suicidas. Sempre se valeu da experiência e intuição para resolver os casos policiais. Desde que se aposentou não tinha mais vontade de viver. Separado, filha que não via a mais de 2 anos. Passava os dias na frente da televisão, vendo programas populares e comendo. Sua principal amiga era um revólver .38, que ganhou do pai a muitos anos. Sempre pensou em se matar. Acreditava que após a aposentadoria, mais da metade da sua vida tenha ficado dentro do departamento de polícia.

Hodges também se culpava e muito por nunca ter descoberto o assassino do City Center. Em vários anos como detetive, era o primeiro e único caso que não conseguiu solucionar. Não entende de computadores e todas a facilidades que um google pode oferecer, principalmente quando se quer saber da vida e rotina das pessoas. Sempre acreditou que apenas intuição eram necessárias para pegar um criminoso.

Brady Harstfield, (vilão de Mr. Mercedes). O bandido da história. Um jovem na casa dos 30 anos, solteiro. Para muitos um fracassado que ainda vivia com a mãe e nutria uma paixão, desejo por sua progenitora. Nunca se envolveu com nenhuma mulher. Tinha dois empregos para viver, técnico em informática, algo que dominava e vendedor de sorvete, algo que detestava. Brady é cerebral e metódico.

Acaba sempre passando despercebido pelos lugares. Extremamente educado e ao mesmo tempo provido de um cinismo ímpar. Todos gostam dele, pois é educado e prestativo. Sabe entrar nos lugares e tem um grande poder de persuasão. Durante a narrativa, sua frieza é total falta de compaixão é retratada de forma intensa. Ele não gosta de ninguém, com exceção da mãe bêbada. Por muitas vezes tem vontade de dar fim no alcoolismo e no estado deprimente que ela vive. Pensa nisso com uma veemência cada vez maior.   

Em Último Turno, Brady volta. Mais sádico e apaixonado por suicídios, principalmente de pessoas que não conseguiu matar no City Center. Seu alvo é claro, Bill Hodges e seus fiéis escudeiros. Com um exímio poder de controlar todos, acaba “recrutando” ajudantes para seus planos. Mesmo confinado em uma cama, sem grandes avanços motores, seu cérebro ferve. Ele tem muito tempo para pensar.

Morris Bellamay, (vilão de Achados e Perdidos). Morris poderia ser classificado hoje como um Hater. Ele nunca aceitou, os rumos que Jimmy Gold ganhou na trilogia escrita por John Rothstein. Era um jovem promissor, de família rica e inteligente. Ele se achava o verdadeiro crítico de literatura, não era preso a coisas mundanas. Tinha um nível intelectual superior aos seus amigos. Mesmo assim não teve tempo para provar todos esses predicados. A prisão tirou 30 anos da vida de Morris. Em nenhum momento, ele desistiu do seu objetivo que era saber qual o destino do seu ídolo. Sua obsessão também foi seu maior inimigo.

Peter Huntley e Isabelle Jaynes, os detetives “oficiais” da trilogia. Peter foi parceiro de Hodges por muitos anos, não tinha o mesmo tino para as investigações. A dupla sempre foi feliz na resolução dos casos, muito mais pelo sexto sentido de Bill. Peter meio que se acostumou em ser o número 2.

Isabelle entrou para o departamento de investigações, pouco depois da aposentadoria de Hodges. Ela é nova, muito bonita e carreirista. Quer a todo custo ser detetive chefe. Não é de ouvir Peter, muito menos Bill e Holly. Durante toda a história, Isabelle passa a impressão, bem justificada aliás, de que por ser mais nova, inteligente e bonita, pode resolver tudo sozinha. Ela erra feio. Acaba tendo que se curvar em cima dos argumentos de Hodges e principalmente Holly. Pode ser considerada a anti vilã da história. Por conta da falta de vontade, muitas vezes acaba ajudando Brady sem saber.

Jerome, O nerd do bem, é um adolescente que provavelmente é a única pessoa que Bill confia (ao lado de Holly e Janelle, com menos intensidade é claro). Sendo vizinhos, Jerome sempre realiza a manutenção do gramado do detetive aposentado. Negro, acaba problematizando isso durante a narrativa, mesmo sabendo que é superior as pessoas que ridicularizam sua cor. Com uma voz grossa para sua idade, é a ponte entre Bill e as novas tecnologias. Tem o dom da paciência.

Holly, com vários distúrbios mentais. Uma mulher, que ainda carrega uma mente de adolescente. Isso é facilmente identificado pelas roupas, cabelo e jeito de falar. Tomando remédios “tarja preta”, muito dos distúrbios são agravados pela superproteção da mãe. Mesmo com todas as confusões, traumas e preconceito que enfrentou na adolescência, Holly é um amor de pessoa. É apenas incompreendida.

Janelle, Prima de Holly, herdou os milhões da irmã Olivia Trelawney, que morreu de forma muito suspeita. Ela e Bill tem uma forte ligação que acaba despertando em ambos um tórrido romance. Os dois nunca esperavam que voltariam a nutrir um sentimento pelo sexo oposto. Bill e Janelle tiveram conturbadas separações no passado. Some isso a idade do detetive. Sua autoestima não andava nos melhores dias. Janelle é bonita, e parece não se ligar do poder de sedução que tem, até conhecer o detetive aposentado.

Peter Saubers, (Achados e perdidos)Jovem inteligente. Estuda literatura americana. A principal influência para escolher este estudo, foi John Rothstein. A crise financeira que assola a família faz o adolescente buscar alternativas para salvar o casamento dos pais e as contas. Entra em um dilema moral após começar a mandar o dinheiro para os pais de forma anônima. Qual seria o preço para manter a família unida.

Assim como Morris, Peter tem um valor sentimental pelos manuscritos, não sabe o que fazer com eles, não são apenas um monte de linhas que ficaram enterradas por mais de 30 anos. A história de Jimmy Gold está ali, Peter também é fã, não um fã como Morris, que se intitula o número 1. Precisa preservar aqueles documentos.

Mr. Mercedes, o começo de Bill Hodges

Tudo começa com o roubo do Mercedes de Olivia Trelawney. Brady avança sobre uma fila de desempregados que madrugaram em frente ao City Center, esperando conseguir emprego. Ele não tinha um objetivo claro. Não escolheu as pessoas, fez tudo aleatoriamente. O único cuidado foi não deixar rastros. Foi bem sucedido, já que passou muito tempo e nenhum suspeito foi capturado. O caso era dado como sem encerrado por falta de provas. Alguns poucos sobreviventes ganharam uma tímida ajuda do governo local e tudo ficou por isso mesmo.

Mesmo sem ter solucionado o caso, Bill se aposentou com honras. Ganhou festa e medalha da corporação. De certo modo isso incomodava Brady. Não ter êxito no caso mais importante da sua carreira, sair do departamento policial, com honras de heróis, deixava Brady inquieto. Ele queria ser lembrado, queria que o detetive aposentado fizesse algo, e que também morresse.

“Essa pareceu ser a melhor chance deles, provavelmente a única. Ele levantou a cabeça para ver o que estava acontecendo, mas um pneu enorme consumiu sua visão. Ele sentiu a mão da mulher agarrar seu antebraço. Houve tempo de torcer para que o bebê ainda estivesse dormindo. E aí, o tempo acabou.” Mr. Mercedes, página 17.

A partir daí, Mr. Mercedes manda uma carta anônima para Bill. Não esperava resposta, ou acreditava que a carta iria o mais rápido possível cair nas mãos dos policiais da ativa. Nenhuma das coisas acabou acontecendo. Bill leu, releu e remoeu as palavras, em tom de desafio proferidas pelo assassino. Se sentiu ameaçado e instigado. Todos aqueles anos como detetive, o melhor do distrito estava sendo colocados em xeque por um adolescente, mimado e retraído (esse era o pensamento inicial de Bill).

Nas primeiras partes do livro, um sentimento de pena surge por conta do estado deplorável em que encontramos Bill Hodges. Seja pela formidável imagem que Stephen King criou dele, por todo o livro esperamos que mais hora ou menos hora ele estaria caído no chão sob os pés de Danny. O jovem assassino era esperto, mas também instável longe de uma tela de computador, uma característica bem comum nos dias de hoje, com muitos revolucionários de facebook. Por ser inteligente, acreditava que toda a humilhação que sofreu com as dificuldades que passou na infância, morte do irmão menor e as bebedeiras que a mãe tomava todos os dias, precisava ser recompensada de alguma forma. Para ele a forma mais fácil era matar pessoas.

Bill acabou aceitando a ajuda e Jerome. Não entendia nada de computadores. A ajuda se tornou providencial depois que Brady começou a manter contato em um site de relacionamento. Jerome era inteligente, mas também um jovem aspirante a Harvard. Bill se preocupava com ele.

“Isso faz Brady se lembrar de um velho ditado: Se alguma coisa pode dar errado, com certeza dará. É o Princípio de Peter? Ele decide verificar on-line. Depois de um pouco de investigação, descobre que não é o Princípio de Peter, mas sim a Lei de Murphy. Batizada em homenagem a um homem chamado Edward Murphy. O cara fazia peças de avião. Quem imaginaria?”  M.Mercedes. Página 209.

Investigar crimes por conta própria era crime. Bill sabia disse e por um jovem para lhe ajudar em algo ilegal tirava o pouco sono que ainda tinha. Mesmo assim começou a caçar Mr. Mercedes, nome dado por conta do carro utilizado na morte das pessoas no City Center.

O detetive aposentado precisava refazer toda uma investigação. O ponto inicial era como ele roubaria o carro se sua dona, Olívia não tinha deixado a chave na ignição e afirmava não possuir chave reserva. Bill tinha uma certa dívida com ela, pois foi tratada como suspeita e cúmplice daquelas mortes. Na época dos assassinatos, a imprensa criou um verdadeiro festival em cima da participação de Olívia nas mortes. A senhora que não tinha uma boa saúde mental, era uma excêntrica milionária que cuidava da mãe mais idosa e cheia de problemas.

Mesmo que ela não tivesse qualquer participação em nada, o jeito como foi tratada estava errado. Foi por voltar a frequentar a casa, que Bill começou a se relacionar com Janelle, irmã de Olivia e que herdou os milhões da irmã. Em um mundo real, os dois não eram propensos a ter qualquer tipo de relacionamento. Mas tiveram. Seja por carência de ambos, seja por necessidade física, os dois estavam se gostando. Ela era 20 e poucos anos mais nova que ele. Ele era gordo e a muito tempo não tinha qualquer contato com o sexo oposto. Estavam com a auto estima baixa. Some isso com o tamanho da conta bancária dela e da vida simples dele.

“Ele segura Holly pelos ombros e a vira para ele. O cabelo solto dos coques de princesa Leia e cai sobre as bochechas. Os olhos arregalados parecem enxergar através dele. A mente de Hodges, mais afiada do que nunca, sabe que ela não serve para nada nesse estado. Ele dá um tapa em uma bochecha e depois na outra. Não são tapas fortes, apenas o bastante para fazer as pálpebras dela tremerem.” Mr. Mercedes, página 259

Assim Janelle começou a ajudar Bill na busca pelo assassino. Ela tinha recursos, o que poderia ser útil no final das contas, e dinheiro era algo que o detetive não tinha sobrando. Brady descobre as intenções da dupla, e já pensa em um jeito de estragar a felicidade dos pombinhos. Com a ajuda inesperada de Holly, que poucos davam crédito por qualquer coisa, principalmente sua mãe, super protetora e extremamente chata. Holly e Jerome se dão super bem, os dois tem em Bill, um pai, um tio, aquele senhor que se pode confiar. Jerome é cerebral, Holly é intempestiva. São uma boa dupla.

Os meios que o trio usa, para desvendar o caso é muito interessante. Cada um tem seus métodos, muitos deles engraçados. Stephen King como sempre, dá boas tiradas humorísticas durante a narrativa. O detalhamento dos personagens também é primoroso. O jeito que descreve a mãe de Holly, a famigerada tia Charlotte é muito engraçado.

Todos tem aquela tia velha, chata que fala de todos e mete defeito em tudo. Muito dos problemas de Holly são agravados pelo jeito que a mãe trata todos a sua volta. Nada está bom, nada é como ela gostaria que fosse. O jeito que fala com as pessoas ao seu redor, faz o leitor querer entrar no livro e dar boas e mal educadas respostas a tia chata.

“Dessa vez é Jerome que vai ao volante, e Hodges o banco de trás. O Mercedes de Olivia Trelawney começa devagar, mas, quando o motor de doze cilindros ganha embalo, segue como um foguete… e com as vidas da mãe e da irmã em jogo, Jerome dirige como um, mudando de faixa e ignorando as buzinadas de protesto dos carros ao redor. Hodges estima que eles chegarão ao MAC em vinte minutos. Se o garoto não bater, claro.” Mr. Mercedes, página 355.

Será que o trio vai conseguir pegar Brady? A tarefa não será fácil. Com a iminência de ser capturado, Mr. Mercedes precisa matar, ou apenas Bill. Antes quer um grand finale, quer matar mais e mais. Para isso precisa bolar um bom plano.

King usa elementos clássicos para compor sua história. O nerd, a menina com problemas e quer se enturmar. A senhora rica e sozinha, e é claro o assassino, que sofreu muito na infância e tenta recuperar isso ceifando vidas. Também temos a mãe alcoólatra, os detetives que estão ainda na ativa e não aceitam serem superados por um velho gordo. Sem falar dos vizinhos fofoqueiros e parentes chatos.

A parte mais chocante, ou que deixa o leitor incomodado é a morte do irmão de Brady, Frankie. Morto em condições suspeitas, quando pequeno, Frankie povoa os pensamentos do irmão mais velho. A cena da morte, vai deixar os papais e mamães assustados

Mr. Mercedes mostrou um King muito astuto na montagem dos personagens e também cerebral. Não quis inventar moda, nem levar a história para o lado do terror. Algumas poucas linhas são usadas pelos sonhos e falas que Brady tem com o irmão e a mãe que também morre pelo caminho. Sem exageros. Vamos deixar os fantasmas e vampiros em Salem, e sonhos escabrosos a cargo de Pennywise.

Bill Hodges na TV 

Brendan Glesson será Bill Hodges

O sucesso de Mr, Mercedes já chegou as produtoras de TV. A AT&T, escalou Harry Treadawy que participou de Penny Dreadful. Fará o papel de Brady e Brendan Glesson o papel de Hodges.

A princípio o vilão ficaria a cargo de Anton Yelchin, que acabou falecendo. A estreia de série que vai contar com 10 episódios deve acontecer em 2018. A produção ficou por conta e David E. Kelley e Jack Bender (Lost, Game of Thrones).

Achados e Perdidos

A segunda parte da trilogia, poderia ser encarado como um livro independente de Stephen King. Achados e Perdidos dá uma esfriada, se comparado ao primeiro volume. A história é boa, mas quem busca emoção do começo ao fim como no primeiro volume, pode se decepcionar um pouco.

Os elementos que ligam um livro ao outro estão ali, Bill, Jerome e Holly. A história parece uma crítica aos leitores que acabam reclamando dos rumos que autores dão as suas histórias. King nunca escapou disso.

John Rothstein, autor da trilogia Jimmy Gold, um intrépido jovem americano que renega o sistema. Essa era a síntese no anos 60 e 70. Auge do movimento hippie. Rothstein ganhou prêmios e notoriedade com as aventuras de Jimmy. Como muitos escritores, John era excêntrico. Após o lançamento dos livros se fechou em uma cidade pacata.

Poucas pessoas tinham acesso a sua intimidade, com exceção da empregada e do seu agente. Estava rico, tinha decidido se desligar do mundo. Lendas começaram a surgir depois dessa reclusão. Estaria Rothstein voltado a escrever? Jimmy Gold ganharia mais histórias?

(…) e oferecer um conselho de amigo: quando você  abordar esse tipo de coisa no ano que vem, e na faculdade também, não deixe sua natureza otimista atrapalhar seu olhar crítico. O olhar crítico sempre deve ser frio e lúcido (…). Achados e Perdidos, página 95

O escritor já estava velho, já tinha vivido bastante. Para críticos e a maioria dos fãs, ele estava apenas esperando chegar seu último dia na terra.

Não era o que Morris Bellamy achava. Ele se intitulava o fã número 1 de Jimmy, se via nas histórias do jovem inteligente e incompreendido. Morris não teve uma vida fácil, e ler como seu personagem conseguia sair dos problemas em que se metia era um estímulo. No último volume da trilogia, aquele garoto impetuoso, se casou, deixando as aventuras habitando apenas suas memórias.

Morris acreditava que seu autor preferido, tinha se vendido para o sistema. Em uma época em que os jovens cada vez mais tinham comportamentos alheios aos desejos dos pais, Jimmy Gold, o principal expoente de uma geração estava apaixonado. Tinha se tornado um homem comum que as 18 horas volta para casa após um burocrático dia de trabalho. Janta com a esposa e assiste futebol confortavelmente.

“Para os leitores, uma das descobertas mais eletrizantes da vida era a de que eles eram leitores, não apenas capazes de ler (o que Morris já sabia), mas apaixonados pelo ato. Desesperadamente. Incorrigivelmente. O primeiro livro a fazer isso nunca era esquecido, e cada página parecia trazer uma nova revelação que queimava e exaltava: Sim! É assim! Sim” Eu também vi isso! E, claro: É o que eu acho” É o que eu SINTO!” Achados e Perdidos, página 118.

Morris não aceitava isso. A ideia de que Rothstein tinha continuado a escrever, a esperança de que Jimmy seria salvo, fez ele e mais dois comparsas fazer uma pequena visita as instalações do recluso escritor. Morris não queria dinheiro, mesmo sabendo que o velho era rico. Morris queria tirar a dúvida se ele ainda escrevia, e dar aquela opinião sobre os rumos do seu ídolo.

Seria um roubo fácil, se não fosse a pequena discussão que teve com Rothstein pouco antes da sua morte. Foi apenas um tiro. Agora Morris tinha certeza que nenhum livro iria sair da cabeça do seu escritor favorito.

Após pegar os manuscritos, Morris precisa esconder seu maior tesouro. Decide enterrar em um local próximo da sua casa. Mesmo estando com uma curiosidade surreal de ler, todos aqueles cadernos ele precisa esperar.

Nem sempre as coisas andam como gostaríamos. Morris, não tem uma boa relação com a mãe, uma inteligente professora. Ela sempre criticou seus gostos literários. Por conta desta discussão e por enfrentar problemas com bebida, Morris acaba violentando uma mulher. Acaba pegando prisão perpétua, e literalmente vira mulherzinha da cadeia. Mesmo aguentando aquela situação e ter que passar 30 anos preso, ele sabe. Tudo vale a pena para ler os manuscritos enterrados.

(…) Um bom escritor não manda nos personagens, ele os segue. Um bom escritor não cria os eventos, ele os vê acontecerem e escreve o que vê. Um bom escritor se dá conta de que é um secretário, não Deus (…) Achados e Perdidos, página 122.

Muitos anos depois, Peter Saubers, marido de Linda e pai de Peter e Tina, estava discutindo com a esposa. O desemprego tinha pego a família em cheio. Peter precisava ganhar dinheiro, a feira de oportunidades no City Center poderia resolver tudo. Eram mais de 1000 vagas. A esposa não queria que ele fosse tão cedo. Ela estava preocupada. O marido não se importava.

Mal sabia ele que seria uma das vítimas do Mr. Mercedes. Como resultado passou vários meses andando de muletas e com dores crônicas nas pernas. Estava vivo, porém desempregado e principalmente, sem perspectivas.

O filho mais velho Peter, não aguentava ver os pais brigando por dinheiro. Nenhum casamento vai longe sem dinheiro, qualquer um sabia disso. Ele estava prestes a ver os pais distantes um do outro. Precisava fazer alguma coisa.

Andando pela pequena trilha que começa atrás de sua casa, levando a um pequeno rio, Peter encontra algo enterrado as margens. Seria um tesouro? Lixo? Um corpo? Ele não sabe mas vai descobrir. Encontra os manuscritos e dinheiro. Deviam estar ali a muito tempo, pelo estado do baú enterrado. Vender? Contar aos pais? Ou deixar ali.

Este são os dois pilares que movem a história. Pilares que consomem grande parte das 350 páginas do livro. A história se passa 4 anos após os acontecimentos do City Center e de todos os desdobramentos em que se meteram Bill, Holly e Jerome. O trio demora para aparecer na história.

Bill Hodges é dono da agência “Achados e perdidos”, um local que pessoas que não conseguem receber dinheiro de devedores, tem bens roubados acabam precisando da ajuda de Bill e Holly. É um trabalho promissor. Jerome virou um dos homens de Harvard e vê pouco os amigos. O detetive aposentado ainda se vale da sua experiência. Mesmo assim se aliou a tecnologia, não esquece mais o celular dentro do porta-luvas do seu carro.

A vida de Bill e da família Saubers se cruza pela amizade de Tina, irmã de Peter e Bárbara, irmã de Jerome. A partir dali os acontecimentos acontecem de forma rápida. Se para muitos o começo do livro pode parecer chato e enrolado, o final passa rápido demais.

(…) Também é o que faria Peter odiar aquele homem mesmo que ele não estivesse apontando uma arma para a barriga trêmula e vulnerável da sua irmã. Lábios Vermelhos tirou a vida de um grande escritor, e por quê? Porque Rothstein ousou seguir um dos personagens que foi em um direção que Lábios Vermelhos não gostou? Sim, era isso. Aquele homem o matou por causa de um crença própria: a de que a escrita era mais importante do que o escrito (…) Achados e perdidos, página 323

King explora de forma muito convincente a vida que Morris passa na prisão. As seções que ele acaba sendo violentado são recorrentes. É o castigo de quem fez o que fez com a pobre moça que inocentemente cruzou seu caminho. A vida entre 4 paredes lembra muito o conto Rita Hayworth e a Redenção de Sahawshank, que deu origem ao filme Um sonho de liberdade. Outras obras de King também aparecem no decorrer do livro.

Bill agora na faixa dos 66 anos, está melhor fisicamente do que quando acabou com os planos de Brady Harstfield, que ainda vegeta em um quarto de hospital. Ele visita regularmente. Mr. Mercedes, que não faz nada sozinho, não lembra nada o sádico e inteligente bandido que foi. Bill acredita que ele não vai demorar a “acordar. Seu principal rival vai voltar a matar. Brady aparece pouco neste segundo volume. Vegetando no hospital, é lembrado esporadicamente por Bill, que começa a ter uma obsessão pelo bandido. Estranhas coisas começam a acontecer no quadro de Mr. Mercedes. Bill não quer acreditar que seja algo sobrenatural, mas também não duvida.

Holly também apresentou melhoras. A intrépida assistente adquiriu a Síndrome de Asperger, Distúrbio do desenvolvimento que afeta a capacidade do indivíduo de socializar-se e comunicar-se de maneira efetiva. Hoje ela está melhor, mas em momentos tensos a vontade de se isolar do mundo volta com um sopro de vento repentino.

Como Peter vai conseguir se livrar de Morris 30 anos depois? Ele não esqueceu os cadernos. Ele precisa saber o que aconteceu com Jimmy Gold.

A grande mensagem que King passar com Achados e Perdidos é a abordagem do fã com o escrito e sua obra. Ele já retratou isso no livro Sobre a Escrita, onde sugere que o personagem tem vida própria, e não cabe ao autor moldar ele conforme seus gostos pessoais. O personagem tem que descobrir seu norte. Em um mundo onde todos querem expressar sua opinião sobre tudo, e críticas pesadas são proferidas quando a história não segue a linha que o fã quer. O escritor é execrado.

Morris Bellamay x Brady Harstfield

Stephen King conseguiu criar dois vilões totalmente diferentes e parecidos. Brady amava a mãe, enquanto Morris a temia. A relação deles com suas progenitoras moldou de forma negativa suas personalidades.

Brady, mesmo amando aquela mãe, não fez esforços para salvar sua vida. Foi um acidente? Foi, mas poderia ter sido evitado. Morris não gostava da mãe, mas tirar sua vida não era um dos objetivos, muito menos desejo.

Os dois eram extremamente inteligentes, acima da média. Sabiam disso. Brady nasceu na era da informática e dominava bem os computadores. Morris passou 30 anos preso, quando voltou a vida real, aprendeu a manusear um mac, mesmo estando com 59 anos. Odiava o que o mundo tinha se transformado, jovens cada vez mais conectados. Ele resolvia as coisas da forma antiga e funcional. Machados e armas. Para Brady, bastava apenas pressionar o enter.

O sexo também era um problema para ambos. Brady só conseguir chegar ao orgasmo pensando na mãe, tocando na mãe. Morris acabou sendo estuprado diversas vezes nos anos em que ficou preso. O prazer de uma relação após tudo aquilo o deixou sem vontade alguma. Ambos são extremamente preconceituosos, seja com negros, opção sexual ou forma física.

São pessoas que nunca seriam convidadas para qualquer festa. Acabaram se isolando em seus mundos particulares. Gostam desse “estilo de vida”.

Annie Wilkes x Morris Bellamay

Kathy Bates como Anni Wilkes em Misery. Ela também era fã número 1. (Foto: Divulgação)

A convivência entre fãs e seus ídolos nem sempre é pacífica. Casos de fãs que matam não é algo incomum. Stephen King conta esse tipo de relacionamento em Missery. Na história, Paul Sheldon, escritor que também tem seus momentos de solidão enquanto produz seus livros isolado em um hotel. Sua vida acaba cruzando com Annie Wilkes, após sofrer um acidente.

Quando acorda, Paul se depara com Annie, enfermeira que acaba cuidado dos seus ferimentos. Ela também se intitula sua fã número 1, e não aceita o destino que Paul deu a Missery, uma heroína que fez seu criador ser um escritor famoso e rico.

Paul não gosta mais de escrever sobre Missey, o que deixa sua nova amiga revoltada, principalmente depois que que Paul, mata a protagonista. De uma forma nada delicada, Annie, exige que um novo final seja escrito, e principalmente que sua tão amada personagem fique viva.

As diferenças entre Annie e Morris são pequenas. Os dois querem matar seus escritores. Morris consegue, Annie tenta por diversas vezes, mas Paul teve mais tempo que John Rothstein. Acabou sabendo dançar conforme a música e saiu com vida. Ele não tem qualquer dúvida que também estaria em um caixão se não tivesse sido falso e por muitas vezes dissimulado.

Último Turno

O terceiro e derradeiro livro, leva o leitor a um intenso jogo de investigação e corrida contra o tempo. Brady acorda do coma. Se o corpo está morto, e qualquer esforço para mover braços e pernas ou simplesmente comer um pão, se tornam verdadeiras epopeias, o cérebro está bem, bem até demais.

O Mr. Mercedes foi esquecido pela mídia. Quase não falam mais da tragédia do City Center, muito menos da tentativa frustrada de explodir milhares de adolescentes histéricas em um show de Rock em um passado, presente muito mais na cabeça dele, do que nas vítimas. Essa lembrança, se deve a bela atitude de Holly.  

Brady percebe que tem algum tipo de poder. Consegue se ver em outros corpos, em outros ambientes. A ciência chama de Telecinesia: movimento de objetos a distância, sem intervenção direta ou contato físico de alguém e supostamente devido a poder paranormal. Ele, a princípio não sabe como desencadeou isso. Seu médico, Felix Babineau, um profissional de renome, acaba transformando seu paciente mais ilustre em uma cobaia, para experimentação de novos medicamentos. Essas drogas, poderiam ter contribuído para que Mr. Mercedes tivesse poderes fora do comum? Ou foi Holly que despertou regiões cerebrais no momento que o acertou?

Se nos dois primeiros livros, King foi “político”, em um ambiente que não tem monstros e qualquer coisa sobrenatural envolvida, Último Turno mostrou um enredo made by King, em sua melhor forma.

“Essa semente agora, contra todas as probabilidades, floresceu. O caminho é longo e difícil, mas valeu cada passo árduo. Os golpes que ele sofreu naquela noite no Mingo não encerraram seu destino; só o garantiram. 
Ele será o Jim Jones do século XXI”. Último Turno, página 227 

Os poderes de Brady, inexplicáveis, fizeram um bem a história, tomando de surpresa quem esperava nada inexplicável na trilogia. A explicação até existe, e vai surpreender quem está acostumado com os enredos de King. Hodges não acredita em nada que não possa vez ou tocar. Ele sabe, e aguarda que seu maior caso policial, desperte mais cedo ou mais tarde.

A relação de Brady com Felix Babineau, remete muito ao romance de Robert Louis Stevenson, O Médico e o Monstro. O narcisismo de Babineu, foi a porta de entrada para Brady o manipular e com isso começar a matança novamente. E acredite. Ela volta com tudo. Seu foco são os sobreviventes do show de rock. 

King deixa claro o poder da sugestão no estereótipo das vítimas de Brady. Tem a gordinha, que não consegue se encontrar na sociedade, a negra rica que não é aceita pelos amigos, o homossexual que é ridicularizado pelo pai. São exemplos que encontramos todos os dias na rua onde moramos, escola ou trabalho. Pessoas que acabam se deixando levar pelo preconceito e por não conseguir se enturmar, em uma sociedade cada vez mais intolerante. Pessoas com baixa autoestima, acabam sendo facilmente manipuladas. É o que Brady precisa.

Até o trio, Jerome, Holly e Bill tem seus “defeitos”. Holly sofreu na adolescência por conta da síndrome de Asperger, Jerome, não aceita ser ridicularizado por conta da cor, e Bill, mesmo sendo um policial brilhante, não tinha o estereótipo que se espera de um detetive. Todos eles se sobressaíram com trabalho e uma reconfiguração da sua autoestima. As falas, expressões que Brady aplica a suas vítimas, o ódio por não gostar de ninguém, simplesmente por não gostar, aquele ar dissimulado. Ficamos torcendo, para que morra da forma mais lenta e dolorosa possível.

(…) Brady teve muitas vitórias no quarto 217, mais teve que guardá-las para si. Voltar da morte-vida que era o coma; descobrir que podia (por causa da droga que Babineau administrou ou por causa de alguma alteração fundamental em seus ondas cerebrais, ou talvez até da combinação dos dois) mover pequenos objetos só de pensar neles; habitar o cérebro do Al da biblioteca e criar dentro dele uma segunda personalidade, Z-Boy (…) Último Turno, página 241.

Último Turno, é o mais complexo dos três livros. Se Mr. Mercedes foi algo dinâmico, Achados e Perdidos foi rápido de se ler, mas não tão empolgante, o desfecho da história, vai requer uma atenção extra do leitor. A grande quantidade de detalhes dos personagens, algo comum no texto de King está ali. Some isso aos métodos que Brady usa para cometer seus crimes. Nada que desabone a narrativa, pelo contrário. Deixa ela mais e mais instigante.

Stephen King foi feliz com sua incursão pelo romance policial. Soube dosar os personagens, não tentou inventar roteiros, e dosou como ninguém o sobrenatural. Nada mais óbvio do que por um tempero do qual cria plantações e mais plantações.

Para quem está se iniciando no universo de Stephen King, a trilogia é uma boa pedida, leve, divertida e aterrorizante ao mesmo tempo. Quem acompanha o trabalho do mestre, vai se surpreender como ele pode se renovar e inovar ao mesmo tempo.

Mr. Mercedes

Tradução: Regiane Winarski

ISBN: 9788556510020

Formato: Brochura Com Orelhas

400 páginas

Achados e Perdidos 

Tradução: Regiane Winarski

ISBN: 9788556510075

Formato: Brochura Com Orelhas

352 páginas

Último Turno

Tradução: Regiane Winarski

ISBN: 9788556510181

Formato: Brochura Com Orelhas

384 páginas


Referência

KING, Stephen. Mr. Mercedes. Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2014. 393 p.

KING, Stephen. Achados e Perdidos. Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2015. 350 p.

KING, Stephen. Último Turno. Rio de Janeiro: Suma de Letras, 2016. 338 p.

KING, Stephen. Misery. Rio de Janeiro: Objetiva, 2014. 326 p.

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